quinta-feira, 22 de abril de 2010

Bíblia e Predestinação [7] - A missão de Jesus é a expiação limitada


Por Helder Nozima

Leia o post anterior da série clicando aqui.
Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos. (Marcos 10:45)
O versículo acima é considerado chave na interpretação do Evangelho de Marcos. Ali, Jesus define qual a Sua missão: dar a vida em resgate por muitas pessoas. Para os não-reformados, "todos" significa, tranqüilamente, muitas pessoas. Todavia, o bom intérprete da Bíblia precisa se perguntar por que Jesus disse "muitos" e não "todos". Para os reformados, portanto, é revelador o fato de que Jesus não diz "em resgate por todos", mas prefere um termo mais restrito. Qual das duas interpretações devemos seguir? Uma olhada em outros textos pode ser esclarecedora.

A profecia de Isaías
Isaías é apontado por muitos como o profeta messiânico, aquele que mais falou a respeito de Jesus. Talvez a profecia mais clara sobre o ministério do Cristo esteja em Isaías 53, quando o profeta descreve o Messias como um Servo Sofredor, que entrega a Sua alma pelo pecado:
Todavia, ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando der ele a sua alma como oferta pelo pecado, verá a sua posteridade e prolongará os seus dias; e a vontade do SENHOR prosperará nas suas mãos. Ele verá o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficará satisfeito; o meu Servo, o Justo, com o seu conhecimento, justificará a muitos, porque as iniqüidades deles levará sobre si. Por isso, eu lhe darei muitos como a sua parte, e com os poderosos repartirá ele o despojo, porquanto derramou a sua alma na morte; foi contado com os transgressores; contudo, levou sobre si o pecado de muitos e pelos transgressores intercedeu. (Isaías 53:10-12)
E aqui, mais uma vez o "muitos" aparece. Repare que parece haver uma insistência do profeta em mostrar que o trabalho do Servo Sofredor alcança a muitos, há uma relutância em dizer "todos". E, de fato, aqui os termos não podem ser apontados como sinônimos. Por quê?

1) Quando Jesus oferece a Sua alma, o que Ele enxerga é a Sua posteridade, ou seja, os Seus descendentes (Is 53:10). Aqui, fala-se, efetivamente, de pessoas salvas, os condenados não podem ser considerados como a posteridade de Cristo. Assim, o que Cristo tem em mente são apenas as pessoas que, realmente, são beneficiadas por Sua oferta;

2) A morte de Cristo é apontada como a prosperidade da vontade do SENHOR (Is 53:10). Em outras palavras, ela é o cumprimento perfeito do desejo de Deus, de outra forma, não faria sentido vê-la como prosperidade. Mais do que isso, o Servo Sofredor vê o fruto penoso de seu trabalho e fica satisfeito (Is 53:11);

3) Qual o trabalho do Servo que O satisfez e cumpre a vontade de Deus? Justificar a muitos. Veja bem, até os arminianos concordam que Cristo não justifica a todos, porque, se assim fosse, todos seriam salvos. Logo, fica claro que a vontade de Deus nunca foi a de que todos fossem salvos, mas sim muitos;

4) E como os "muitos" são justificados? A resposta do versículo 11 é "porque as iniqüidades deles levará sobre si". Segundo Isaías, o Messias leva as iniqüidades apenas dos muitos que são justificados.;

5) Os "muitos" são a parte que Deus dá ao Servo Sofredor (Is 53:12) e o Servo leva sobre Si o pecado de "muitos" (Is 53:12). É claríssimo no versículo 12 que, em toda a visão, que começa em Isaías 52:13 e termina em 53:12, o "muitos" não inclui toda a humanidade, e sim, apenas os que são justificados, tornados justos, salvos enfim. Assim, uma leitura atenta da visão de Isaías mostra que todos os benefícios trazidos pelo sofrimento do Messias se aplicam apenas aos salvos, e não a todos os homens. Todas as vezes que Isaías diz "nós" ou "nossas", é a salvos que ele se refere, e não a todos. Desta maneira, podemos dizer que Jesus:

- Toma sobre si as enfermidades e dores dos salvos apenas (Is 53:4);
- É traspassado pelas transgressões e iniqüidades de salvos apenas (Is 53:5);
- Seu castigo traz paz apenas aos salvos, e não a todos (Is 53:5);
- Suas pisaduras saram os salvos somente (Is 53:5)
- Deus fez cair sobre Ele a iniqüidade dos salvos apenas (Is 53:6). O "todos" aí refere-se a "salvos", não a "todos os homens".
- Foi ferido por causa da transgressão do "meu povo" (Is 53:8), não de "todos os povos".

Talvez um não-calvinista se agarre ao "nós todos" de Isaías 53:6 para tentar provar que o texto se refere a todos os homens. Mas, não é possível. A profecia mostra que nós fomos sarados por suas pisaduras e que o castigo de Jesus nos dá a paz. Pergunto: para quem não crê em Cristo, as pisaduras de Jesus o salvam? O condenado ao inferno tem paz? Isaías seria confuso ou esquizofrênico se, no mesmo texto, uma hora ele falasse de salvos apenas e, em outra hora, de todos os homens, e depois voltasse a tratar exclusivamente de salvos.
Assim, quando olhamos para a profecia, fica claro que o "muitos" de Marcos 10:45 não pode, de modo algum, referir-se a "todos", senão Jesus estaria contradizendo o que o Espírito Santo disse por intermédio de Isaías.

A oração sacerdotal
Em Isaías 53:12, também é dito que Jesus intercedeu pelos transgressores. Inicialmente, pode-se até ter a ideia de que, ao menos orar, Jesus orou por todos os pecadores. Mas, quando se vê o cumprimento da profecia em João 17, vemos que nem intercessão Jesus faz pelos não-salvos:
É por eles que eu rogo; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus... (João 17:7)
Os não-reformados tentam provar que Jesus morreu por todos usando textos como João 3:16, onde se diz que "Deus amou o mundo". Mas aqui, lemos que Jesus não roga pelo "mundo", mas apenas "por aqueles que me deste". Fica claro, portanto, que não se pode ler a palavra "mundo" sempre da mesma maneira. Em João 3:16, podemos ler "mundo" como "criação" ou mesmo "humanidade", daí Jesus vem para salvar parte da humanidade. Porque Deus ama o mundo, não o destruirá por inteiro, parte dele será salvo. Mas, em João 17:9, "mundo" são todas aquelas pessoas que o Pai não deu a Jesus, ou seja, os não-salvos. Estes não recebem sequer a oração do Messias.

Isso fica claro ao lermos outros textos da oração sacerdotal:
Manifestei o teu nome aos homens que me deste do mundo. Eram teus, tu mos confiaste, e eles têm guardado a tua palavra. Agora, eles reconhecem que todas as coisas que me tens dado provêm de ti; porque eu lhes tenho transmitido as palavras que me deste, e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que saí de ti, e creram que tu me enviaste. (João 17:6-8)

Pai santo, guarda-os em teu nome, que me deste, para que eles sejam um, assim como nós. Quando eu estava com eles, guardava-os no teu nome, que me deste, e protegi-os, e nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura. (João 17:11-12)

E a favor deles eu me santifico a mim mesmo, para que eles também sejam santificados na verdade. Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra... (João 17:19-20)

Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens dado, para que sejam um, como nós o somos; eu neles, e tu em mim, a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste, como também amaste a mim. (João 17:22-23)

Pai, a minha vontade é que onde eu estou, estejam também comigo os que me deste, para que vejam a minha glória que me conferiste, porque me amaste antes da fundação do mundo. (João 17:24)

Pai justo, o mundo não te conheceu; eu, porém, te conheci, e também estes compreenderam que tu me enviaste. Eu lhes fiz conhecer o teu nome e ainda o farei conhecer, a fim de que o amor com que me amaste esteja neles, e eu neles esteja. (João 17:25-26)
Pode parecer chocante para muitos, mas a oração é autoexplicativa. Jesus faz diferença entre o mundo e os que o Pai deu a Ele (salvos) em termos de oração, manifestação do nome de Cristo, transmissão da Palavra, guarda, proteção, santificação, companhia de Jesus e até mesmo amor.

Destaco ainda que, de modo explícito, Jesus diz no versículo 19 que se santifica a favor daqueles que recebeu do Pai. Jesus não se santifica pelo mundo.

Desta maneira, João 17 permanece como um baluarte suficiente e inquestionável da expiação limitada. O fato de ser uma oração de Jesus ao Pai e a abundância de distinções feitas por Ele na intercessão deveriam ser suficientes para que todo versículo que sugira uma expiação universal fosse reinterpretado para não conflitar com o próprio Cristo. Aliado a Isaías 53, tem-se duas amplas e significativas porções bíblicas (clássicas até) cujo ensino não pode ser reinterpretado em favor de 2 ou 3 versículos que, supostamente, ensinam que Jesus morreu por todos. O mais provável é que os não-reformados compreendam errado esses versículos do que os reformados errarem na interpretação de duas passagens tão claras, importantes e grandes (são textos, não versículos).

1 João 2:1-2
E isso é particularmente verdadeiro na interpretação de 1 João 2:1-2, um dos textos-prova mais fortes a favor de uma expiação universal:
Filhinhos meus, estas coisas vos escrevo para que não pequeis. Se, todavia, alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo; e ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro. (1 João 2:1-2)
Aparentemente, João ensina que o sacrifício de Jesus foi feito em favor de todos os homens. Não podemos, porém, esquecer aqui que estamos falando do mesmo apóstolo que escreveu a oração de Jesus em João 17. João contradiz a João?

É certo que não. A minha interpretação é a de que João aqui diz o seguinte: "Jesus é a propiciação pelo pecado de todos os que estão lendo essa carta, e não só dos nossos, mas o de todos os salvos espalhados pelo mundo inteiro".

É preciso considerar que a palavra "mundo" tem várias conotações nos escritos joaninos. Se em 1 João 2, se diz que Jesus é a propiciação pelos pecados do "mundo inteiro", no mesmo capítulo o apóstolo diz:
Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele; porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não procede do Pai, mas procede do mundo. Ora, o mundo passa, bem como a sua concupiscência; aquele, porém, que faz a vontade de Deus permanece eternamente. (1 João 2:15-17)
Popularmente, se entende que "mundo" aqui é apenas um sistema político-econômico-ideológico que se opõe a Deus. Mas, no versículo 17, João estabelece um contraste que só faz sentido se incluir também pessoas:
O mundo passa vs. aquele que faz a vontade de Deus permanece eternamente.
O mundo aqui inclui os não-salvos, no mesmo capítulo. Como é possível que Jesus seja a propiciação pelos pecados do mundo inteiro...e o mundo significar também uma humanidade condenada? A resposta é: o mundo em 1 Jo 2:1-2 é diferente do mundo de 1 Jo 2:15-17 e não inclui os condenados. Isso fica mais claro se você considerar que na perícope seguinte (1 Jo 2:18-26), o apóstolo trata dos anticristos.

Um outro contraste entre a igreja e o mundo quando fala de falsos profetas:
Filhinhos, vós sois de Deus e tendes vencido os falsos profetas, porque maior é o que está em vós do que aquele que está no mundo. Eles procedem do mundo; por esta razão, falam da parte do mundo, e o mundo os ouve. Nós somos de Deus; aquele que conhece a Deus nos ouve; aquele que não é da parte de Deus não nos ouve. Nisto reconhecemos o espírito da verdade e o espírito do erro. (1 João 4:4-6)

João volta a estabelecer um contraste entre o mundo e os filhos de Deus no capítulo 5:
Sabemos que todo aquele que é nascido de Deus não vive em pecado; antes, Aquele que nasceu de Deus o guarda, e o Maligno não lhe toca. Sabemos que somos de Deus e que o mundo inteiro jaz no Maligno. (1 João 5:18-19)
E aqui fica claro: há os que nasceram de Deus (salvos) e o mundo (condenados). Tanto aqui como no capítulo 4, o mundo é identificado com Satanás e os que pertencem a Deus estão se opondo ao mundo.
Temos, portanto, pelo menos quatro passagens em 1 João onde "mundo" refere-se a pessoas:

1 Jo 2:1-2 = contexto positivo, Jesus é a propiciação pelos pecados do mundo inteiro.
1 Jo 2:15-17 = contexto negativo, o mundo passa, os que fazem a vontade de Deus permanecem eternamente. Distinção e contraste entre igreja e mundo. Mundo é humanidade condenada.
1 Jo 4:4-6 = contexto negativo, o mundo ouve os falsos profetas e é influenciado pelo diabo, a igreja vence os falsos profetas e ouve os apóstolos. Distinção e contraste entre igreja e mundo. Mundo é humanidade condenada.
1 Jo 5:18-19 = contexto negativo, o mundo é do Maligno, os que são de Deus não são tocados pelo diabo. Distinção e contraste entre igreja e mundo. Mundo é humanidade condenada.

Considerando os contrastes repetidos que João faz entre os salvos e os condenados, é impossível que "mundo" em 1 João 2:1-2 se refira a todas as pessoas. Logo, a melhor saída é a minha interpretação, de que João se referia a salvos em todo o mundo (planeta Terra), por se harmonizar tanto com o restante da carta como com João 17 e Isaías 53.

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