segunda-feira, 7 de junho de 2010

O que é a doutrina da Trindade? (2/2)


Por John Piper

A doutrina da Trindade é fundamental para a fé cristã. Ela é crucial para um apropriado entendimento de como Deus é, como Ele se relaciona conosco e como devemos nos relacionar com Ele. Mas ela também levanta muitas questões difíceis. Como Deus pode ser um e três ao mesmo tempo? A Trindade é uma contradição? Se Jesus é Deus, por que os Evangelhos registraram ocasiões nas quais Ele orou a Deus?

Apesar de não podermos entender completamente tudo sobre a Trindade (ou sobre qualquer outra coisa), é possível responder questões como essas e chegar a uma sólida compreensão do que significa ser Deus três em um.
A Trindade é contraditória?

Essa pergunta leva-nos a investigar mais de perto uma definição muito útil da Trindade que eu mencionei anteriormente: Deus é único em essência, mas triplo em personalidade. Essa formulação pode nos mostrar por que não há três deuses e por que a Trindade não é uma contradição.

Para que alguma coisa seja contraditória, ela deve violar a lei da não-contradição. Esta lei afirma que A não pode ser A (é) e não-A (não é) ao mesmo tempo e no mesmo sentido. Em outras palavras, você se contradiz quando afirma e nega a mesma sentença. Por exemplo, se eu digo que a Lua é feita inteiramente de queijo, mas, então, também digo que a Lua não é feita inteiramente de queijo, estou me contradizendo.

Algumas afirmações podem parecer contraditórias à princípio, mas não o são realmente. O teólogo R.C. Sproul cita como exemplo uma famosa afirmação de Dickens: "Esse foi o melhor dos tempos, esse foi o pior dos tempos". Obviamente isso é uma contradição se Dickens está dizendo que esse foi o melhor dos tempos no mesmo sentido em que esse foi o pior dos tempos.

Porém, essa afirmação não é contraditória, porque ele está dizendo que em um sentido esse foi o melhor dos tempos, mas em outro sentido esse foi o pior dos tempos.
Levando esse conceito à Trindade, não é uma contradição para Deus ser tanto três quanto um porque Ele não é três e um no mesmo sentido. Ele é três num sentido diferente do qual Ele é um. Assim, não estamos falando com uma linguagem dobre. Não estamos dizendo que Deus é um e, então, negando que Ele é um ao dizer que Ele é três. Isto é muito importante: Deus é um e três ao mesmo tempo, mas não no mesmo sentido.

Como Deus é um? Ele é um em essência. Como Deus é três? Ele é três em personalidade. Essência e personalidade não são a mesma coisa. Deus é um em certo sentido (essência) e três em um sentido diferente (personalidade). Já que Deus é um em um sentido diferente do qual Ele é três, a Trindade não é uma contradição. Só haveria contradição se disséssemos que Deus é três no mesmo sentido em que Ele é um.


Então, uma olhada mais de perto para o fato de que Deus é único em essência, mas triplo em personalidade, foi útil para mostrar por que a Trindade não é uma contradição. Mas como isso nos mostra que há apenas um Deus e não três? Muito simples: Todas as três pessoas são um Deus porque, como vimos acima, todas elas são a mesma essência. Essência significa a mesma coisa que "ser". Assim, já que Deus é uma única essência, Ele é um único ser, não três. Isso torna mais claro por que é tão importante entender que todas as três pessoas são a mesma essência. Pois se nós negamos isso, estamos negando a unidade de Deus e afirmando que há mais do que um ser de Deus (ou seja, há mais do que um Deus).


O que vimos até agora provê um entendimento básico da Trindade. Mas é possível aprofundar-nos mais. Se pudermos entender mais precisamente o significado de essência e personalidade, como esses dois termos diferem e como se relacionam, teremos um mais completo entendimento da Trindade.

Essência e Personalidade

Essência.


O que essência significa? Como eu disse anteriormente, significa o mesmo que ser. A essência de Deus é o Seu ser. Para ser mais preciso, essência é aquilo que você é. Sob o risco de soar muito físico, essência pode ser entendida como o “material” do qual você “consiste”. Certamente estamos falando por analogia aqui, pois não podemos entender essência de uma forma física em relação a Deus. “Deus é espírito” (Jo.4.24). Além disso, claramente não devemos pensar em Deus “consistindo” de outra coisa além da divindade. A “substância” de Deus é Deus, não um monte de “ingredientes” que misturados produzem a divindade.

Personalidade.

Em relação à Trindade, nós usamos o termo “pessoa” diferentemente do que usamos no dia-a-dia. Portanto, geralmente é difícil ter uma definição concreta de pessoa quando usamos esse termo em relação à Trindade. Por “pessoa” não queremos dizer um “indivíduo independente”, assim como eu e outro ser humano somos independentes e existimos separados um do outro. Por “pessoa” queremos dizer alguém que se trata como “eu” e aos outros como “vós”. Então, o Pai, por exemplo, é uma pessoa diferente do Filho porque Ele trata ao Filho como “Tu”, apesar de Se tratar como “Eu”. Assim, em relação à Trindade, podemos dizer que “pessoa” significa um sujeito distinto que Se trata como “Eu” e aos outros dois como “Vós”. Esses sujeitos distintos não são uma divisão no ser de Deus, mas “uma forma de existência pessoal que não é uma diferença no ser”[3].

Como elas se relacionam?


O relacionamento entre essência e personalidade, então, é como segue. Na unidade de Deus, o ser indiviso é um “desdobramento” em três distinções pessoais. Essas distinções pessoais são modos de existência no ser divino, mas não são divisões do ser divino. Elas são formas pessoais de existência e não uma diferença no ser. O antigo teólogo Herman Bavinck declarou algo muito útil sobre isso: “As pessoas são modos de existência no ser; conseqüentemente, as pessoas diferem entre si como um modo de existência difere de outro, e – usando uma ilustração comum – como a palma aberta difere do punho fechado”[4]. Já que cada uma dessas “formas de existência” são relacionais (e assim são pessoas), cada uma delas é um distinto centro de consciência, cada um deles Se tratando como “Eu” e aos outros como “Vós”. Porém, todas essas três pessoas “consistem” da mesma “matéria” (ou seja, o mesmo “o que”, ou essência). Como o teólogo e apologista Norman Geisler explicou, enquanto essência é “o que” você é, pessoa é “quem” você é. Então, Deus é um “o que”, mas três “quem”.

Assim, a essência divina não é algo que existe “acima” ou “separada” das três pessoas, mas a essência divina é o ser das três pessoas. Não devemos pensar nas pessoas como seres definidos por atributos acrescentados ao ser de Deus. Wayne Grudem explica:
“Mas se cada pessoa é plenamente Deus e tem todo o ser divino, então tampouco devemos pensar que as distinções pessoais são alguma espécie de atributos acrescentados ao ser divino... Em vez disso, cada pessoa da Trindade tem todos os atributos de Deus, e nenhuma das pessoas tem algum atributo que não seja também possuído pelas outras. Por outro lado, precisamos dizer que as pessoas são reais, que não são apenas modos diferentes de enxergar o ser único de Deus... a única maneira de fazê-lo é dizer que a distinção entre as pessoas não é uma diferença no “ser”, mas sim uma diferença de “relações”. Trata-se de algo bem distante da nossa experiência humana, na qual cada “pessoa” distinta é também um ser distinto. De algum modo o ser divino é tão maior que o nosso que dentro do seu ser único e indiviso pode haver um desdobramento em relações interpessoais, de forma tal que existam três pessoas distintas”.[5]
Ilustrações Trinitárias?

Há muitas ilustrações que têm sido oferecidas para nos ajudar a entender a Trindade. Embora existam algumas ilustrações úteis, devemos reconhecer que nenhuma ilustração é perfeita. Infelizmente, há muitas ilustrações que não são apenas imperfeitas, mas erradas. Uma ilustração com a qual devemos tomar cuidado diz: “Eu sou uma pessoa, mas também sou um estudante, um filho e um irmão. Isso explica como Deus pode ser tanto um quanto três”. O problema com essa ilustração é que ela reflete uma heresia chamada modalismo. Deus não é uma pessoa que desempenha três diferentes papéis, como essa ilustração sugere. Ele é um Ser em três pessoas (centros de consciência), não simplesmente três papéis. Essa analogia ignora as distinções pessoais em Deus e as transforma em meros papéis.

Resumo


Vamos revisar rapidamente o que vimos.

1. A Trindade não é uma crença em três deuses. Há um único Deus e nós nunca devemos desviar-nos disso.

2. Esse único Deus existe como três pessoas.

3. As três pessoas não são partes de Deus, mas cada uma delas é total e igualmente Deus. No ser único e indiviso de Deus há um desdobramento em três relações interpessoais, de forma tal que existam três pessoas. As distinções na Divindade não são distinções de Sua essência, nem são acréscimos à Sua essência, mas são o desdobramento da unidade de Deus, do ser indiviso, em três relacionamentos interpessoais, de modo que há três pessoas reais.


4. Deus não é uma pessoa que assume três papéis consecutivos. Essa é a heresia do modalismo. O Pai não se tornou o Filho e, então, o Espírito Santo. Pelo contrário, sempre houve e sempre haverá três pessoas distintas na Divindade.

5. A Trindade não é uma contradição porque Deus não é três no mesmo sentido em que Ele é um. Deus é um em essência e três em personalidade.


Aplicação

A Trindade é extremamente importante porque Deus é importante. Conhecer mais completamente a Deus é uma forma de honrá-Lo. Além disso, devemos admitir o fato de que Deus é triuno para aprofundar nossa adoração. Nós existimos para adorar a Deus. E Deus busca pessoas que O adorem “em espírito e em verdade” (Jo.4.24). Portanto, devemos sempre empenhar-nos em aprofundar nossa adoração a Deus, tanto em verdade quanto em nosso coração.


A Trindade tem uma aplicação muito importante na oração. O padrão geral de oração na Bíblia é orar ao Pai através do Filho e no Espírito Santo (Ef.2.18). Nossa comunhão com Deus deve ser reforçada por um conhecimento consciente de que estamos nos relacionando com um Deus tri-pessoal.

A conscientização dos papéis distintos que cada pessoa da Trindade tem em nossa salvação pode servir especialmente para nos dar grande conforto e apreciação por Deus em nossas orações, assim como nos ajudar a ser específicos ao dirigi-las a Deus. Porém, apesar de reconhecer os papéis distintos de cada pessoa, nunca devemos pensar nesses papéis de forma tão separada que as outras pessoas não estejam envolvidas. Pelo contrário, em tudo que uma pessoa está envolvida, as outras duas também estão envolvidas, de uma forma ou de outra.


Notas
3. Wayne Grudem, Teologia Sistemática (Edições Vida Nova, 1999), p.189. Apesar de eu crer que essa é uma definição útil, deve ser reconhecido que o próprio Grudem está oferecendo-a mais como uma explanação do que como uma definição de pessoa.
4. Herman Bavinck, The Doctrine of God, (Great Britain: The Banner of Truth Trust, 1991 edition), p. 303.
5. Grudem, p.187-188.

Recursos adicionais


Agostinho, A Trindade
Herman Bavinck, The Doctrine of God, p. 255-334
Edward Bickersteth, The Trinity
Wayne Grudem, Teologia Sistemática, capítulo 14
Donald Macleod, Shared Life: The Trinity and the Fellowship of God's People
R.C. Sproul, O Mistério do Espírito Santo R.C. Sproul , Verdades Essenciais da Fé Cristã
J.I. Packer, O Conhecimento de Deus John Piper, The Pleasures of God, chapter 1
James White, The Forgotten Trinity



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