quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O Espírito de Escravidão

Porque não recebestes o espírito de escravidão. (Rm 8.15).

Por João Calvino

O apóstolo agora confirma a certeza daquela confiança na qual ele recentemente ordenara aos crentes que descansassem em segurança. Ele procede assim ao mencionar o efeito especial produzido pelo Espírito. Este não foi dado para molestar-nos com o medo ou atormentar-nos com a ansiedade, mas, ao contrário, para acalmar nossa intranqüilidade, para trazer nossas mentes a um estado de paz e incitar-nos a clamar a Deus com confiança e liberdade. O apóstolo, pois, não só prossegue o argumento no qual tocara de leve, mas também insiste mais sobre a outra causa que, ao mesmo tempo, conectara com esta, ou seja: aquela que trata da complacência paternal de Deus, pela qual ele perdoa em seu povo as enfermidades da carne e os pecados sob os quais eles ainda labutam. Nossa confiança nessa clemência divina, ensina-nos Paulo, se converte naquela certeza de que o Espírito de adoção opera em nós, o qual não nos obrigaria a viver em oração sem antes selar-nos com o perdão gracioso. Para que este ponto fosse ainda mais evidente, o apóstolo afirma que há dois espíritos. A um ele chama o espírito de escravidão, o qual podemos receber da lei; e o outro, o espírito de adoção, o qual procede do evangelho. O primeiro, afirma ele, foi outrora concedido para produzir temor; o segundo é agora concedido para proporcionar segurança. A certeza de nossa salvação, a qual ele deseja confirmar, desponta, como podemos ver, com grande nitidez daquela comparação de opostos. A mesma comparação é usada pelo autor da Epístola aos Hebreus, ao dizer que não temos que aproximar-nos do Monte Sinai, onde tudo é por demais terrível, e onde o povo, assombrado como que diante de uma declaração de morte, implorou que a palavra não lhes fosse proferida, e quando o próprio Moisés confessou que se sentia dominado pelo terror, "senão que nos acheguemos ao monte Sião, e à cidade do Deus vivente, e à Jerusalém celestial... e a Jesus, o Mediador de uma nova aliança" [Hb 12.18-24].

A luz do advérbio novamente, ou outra vez, aprendemos que o apóstolo, aqui, está comparando a lei com o evangelho. Este é aquele inestimável benefício que o Filho de Deus nos trouxe através de seu advento, a saber: que não mais precisamos nos prender à condição servil da lei. Não devemos, contudo, inferir daqui, ou que ninguém foi dotado com o Espírito de adoção antes da vinda de Cristo, ou que todos quantos receberam a lei eram escravos, e não filhos. Paulo compara o ministério da lei com a dispensação do evangelho, e não pessoas com pessoas. Admito que os crentes são aqui advertidos sobre quão mais liberalmente Deus os trata agora do que antigamente tratou os pais sob o Velho Testamento. Levo em conta, contudo, a dispensação externa, e só neste aspecto é que os sobrepujamos, pois a fé de Abraão, de Moisés e de Davi era mais excelente que a nossa. Não obstante, até ao ponto em que Deus os conservou sujeitos a 'tutores', não alcançaram aquela liberdade que a nós foi concretizada.

Entretanto, devemos ao mesmo tempo observar que o apóstolo faz aqui, por causa dos falsos apóstolos, um deliberado contraste entre discípulos liberais da lei e crentes, a quem Cristo, seu Mestre celestial, não só se lhes dirige com as palavras de seus próprios lábios, mas também os instrui interior e eficazmente pela instrumentalidade de seu Espírito.

Ainda que o pacto da graça se acha contido na lei, não obstante Paulo o remove de lá; porque, ao contrastar o evangelho com a lei, ele leva em consideração somente o que fora peculiar à lei em si mesma, ou seja: a ordenança e a proibição, refreando assim os transgressores com ameaça de morte. Ele atribui à lei suas próprias qualificações, mediante as quais ela difere do evangelho. Contudo, pode-se preferir a seguinte afirmação: "Ele só apresenta a lei no sentido em que Deus, nela, se pactua conosco em relação às obras." Portanto, nossa opinião no tocante a pessoas seria: "Quando a lei foi promulgada no seio do povo judeu, e mesmo depois de ser promulgada, os crentes foram iluminados pelo mesmo Espírito de fé. Assim a esperança da herança eterna, da qual o Espírito é o penhor e selo, foi selada em seus corações. A única diferença é que o Espírito é mais profusa e liberalmente derramado no reino de Cristo." Entretanto, se considerarmos a própria administração da doutrina, perceberemos que a salvação foi primeiro revelada de forma plena quando Cristo manifestou-se em carne, tão profunda era a obscuridade em que todas as coisas se achavam envolvidas no período do Velho Testamento, quando comparado com a clara luz do evangelho.

Finalmente, a lei, considerada em si mesma, outra coisa não pode fazer senão cegar aos que se acham sujeitos à sua desgraçada servidão, dominados pelo horror da morte, visto que ela não promete nada senão sob condições, e só pronuncia morte a todos os transgressores. Portanto, enquanto que sob a lei se achava o espírito de servidão, o qual oprimia a consciência com o medo, também sob o evangelho se acha o Espírito de adoção, o qual alegra nossas almas com o testemunho de nossa salvação. Note-se que o apóstolo conecta medo com servidão, visto que a lei não pode fazer nada senão molestar e atormentar nossas almas com um miserável descontentamento, enquanto exercer seu domínio. Portanto, não há nenhum outro remédio para pacificar nossas almas além do antídoto divino que cura nossos pecados e nos trata com aquela benevolência com que um pai trata seus filhos.

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