quarta-feira, 31 de março de 2010

A Matança dos cananitas



Por William Lane Craig
Questão 1:
Nos fóruns, tem havido muitas boas questões levantadas acerca do assunto da ordem de Deus para os judeus cometerem “genocídio” às pessoas da terra prometida. Como você tem colocado em alguns de seus trabalhos escritos que estes atos não se ajustam com o conceito ocidental de Deus sendo um doce papai no céu. Agora nós certamente podemos encontrar justificativas para aquelas pessoas ficarem debaixo do julgamento de Deus por causa dos seus pecados, idolatria, sacrifício de suas crianças, etc. Mas uma difícil questão é a matança de crianças e bebês. Se as crianças são jovens o suficiente juntamente com os bebês são inocentes dos pecados que a sua comunidade tinha cometido. Como nós reconciliaremos esta ordem de Deus para matar as crianças com o conceito de Sua Santidade? – Obrigado, Steven Shea.
Questão 2:
Eu tenho ouvido você justificar a violência do AT com a base de que Deus usou o exército Israelita para julgar os cananitas e a eliminação deles pelos israelitas é moralmente correta por que eles estavam obedecendo a uma ordem de Deus (devia ser errado se eles não tivessem obedecido a Deus na ordem de eliminar os cananitas). Isto se assemelha um pouco em como os Muçulmanos definem moralidade e justificam a violência de Maomé e outras questões morais questionáveis (os muçulmanos definem moralidade como o cumprimento da vontade de Deus). Você pode ver alguma diferença entre a sua justificativa da violência no AT e a justificação islâmica de Maomé e os versículos violentos do Alcorão? São a violência e as ações questionáveis de moralidade e os versículos do Alcorão bons argumentos ao falar com os muçulmanos? - Anônimo
Dr. Craig responde:
De acordo com o Pentateuco (os cinco primeiros livros do Antigo Testamento), quando Deus tirou seu povo da escravidão do Egito e os fez voltar para a terra dos seus antepassados, Ele os direcionou para matar todo o povo cananita que estavam vivendo na terra (Dt. 7:1-2; 20:16-18). A destruição seria completa: cada homem, mulher e criança seriam mortos. O livro de Josué conta a história dos israelitas levando a cabo a ordem de Deus cidade após cidade do começo ao fim de Canaã.
Esta história ofende nossa sensibilidade moral. Ironicamente, contudo, nossa sensibilidade moral no Ocidente foi basicamente, e para muitas pessoas inconscientemente, formada por nossa herança judaico-cristã, a qual nos ensinou os valores intrínsecos dos seres humanos, a importância da conduta justa mais que caprichosamente, e a necessidade da adequada punição para o crime. A Bíblia mesma inculca os valores os quais estas histórias parecem violar.
A ordem para matar as pessoas cananitas está discordante precisamente porque ela parece tão em desacordo com o retrato de Javé, o Deus de Israel, como Ele é pintado nas Escrituras Hebraicas. Contrariamente à retórica vituperante de alguns como Richard Dawkins, o Deus das Escrituras hebraicas é um Deus de justiça, que sofre e de compaixão.
Você não pode ler os profetas do Antigo Testamento sem um senso de profundo cuidado de Deus pelos pobres, oprimidos, humilhados, órfãos e outros. Deus demanda justas leis e justas regras. Ele literalmente suplica às pessoas que se arrependam de seus caminhos errados que Ele poderia não julgá-los. “Vivo eu, diz o Senhor DEUS, que não tenho prazer na morte do ímpio, mas em que o ímpio se converta do seu caminho, e viva” (Ez. 33:11).
Ele enviou um profeta até mesmo para a cidade pagã de Nínive por causa da Sua compaixão pelos habitantes, “homens que não sabem discernir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda” (Jn 4:11). O próprio Pentateuco contém os 10 mandamentos, um dos maiores códigos morais da antiguidade, os quais moldaram a sociedade ocidental. Até mesmo o severo “olho por olho, dente por dente” não foi uma descrição de vingança, mas uma verificação na punição excessiva para cada crime, servindo para moderar a violência.
O julgamento de Deus é qualquer coisa, menos caprichoso. Quando o Senhor anunciou de julgar Sodoma e Gomorra pelos seus pecados, Abraão corajosamente perguntou,
E chegou-se Abraão, dizendo: Destruirás também o justo com o ímpio? Se porventura houver cinqüenta justos na cidade, destruirás também, e não pouparás o lugar por causa dos cinqüenta justos que estão dentro dela? Longe de ti que faças tal coisa, que mates o justo com o ímpio; que o justo seja como o ímpio, longe de ti. Não faria justiça o Juiz de toda a terra? (Gn 18:25).
Tal como o negociante do Oriente Médio pechincha em uma barganha, Abraão continuadamente diminuiu o preço, e a cada vez Deus se comprometeu, sem nenhuma hesitação, garantindo a Abraão que se houvesse até mesmo 10 pessoas corretas na cidade, Ele não a destruiria por causa deles.
Então o que é que Javé está fazendo comandando o exército judeu para exterminar o povo cananita? É precisamente porque nós esperamos que Javé agisse justamente e com compaixão que nós achamos estas histórias tão difíceis de compreender. Como pode Ele comandar soldados para matar crianças?
Agora, antes de tentar dizer algo em forma de responda para esta difícil questão, nós devemos por bem primeiramente parar e perguntar a nós mesmos o que está em jogo aqui. Suponha que nós concordemos que se Deus (que é perfeitamente bom) existe, Ele não poderia ter emitido semelhante ordem. O que se segue? Que Jesus não ressuscitou dos mortos? Que Deus não existe? Dificilmente! Então qual é o suposto problema?
Eu tenho freqüentemente ouvido populares levantarem esta ordem como uma refutação do argumento moral para a existência de Deus. Mas eles estão obviamente enganados. A afirmação de que Deus não pode ter emitido tal ordem não falsifica ou diminui qualquer das duas premissas no argumento moral que eu defendo:
  1. Se Deus não existe, valores morais objetivos não existem;
  2. Valores morais objetivos existem;
  3. Então, Deus existe.
De fato, à medida que os ateus pensam que Deus fez algo moralmente errado na ordenação do extermínio dos cananitas, eles afirmam a premissa (2). Então, qual é o suposto problema?
O problema, parece-me, é que se Deus não emitiu tal ordem, então a história bíblica deve ser falsa. Qualquer um dos incidentes nunca realmente aconteceu, mas é apenas folclore israelita; ou senão, se elas aconteceram então Israel, cheio de um completo fervor nacionalista, pensando que Deus estivesse do lado dele, afirmou que Deus os comandou para cometer estas atrocidades, quando de fato Ele não os comandou. Em outras palavras, este problema realmente é uma objeção à inerrância bíblica.
De fato, ironicamente, muitos críticos do Antigo Testamento são céticos que os eventos da conquista de Canaã ocorreram. Eles tomam estas histórias como parte da lenda da fundação de Israel, de forma semelhante ao mito de Rômulo e Remo e a fundação de Roma. Para tais críticos o problema das ordenações de Deus desaparece.
Agora vamos colocar esta ordem em uma perspectiva totalmente diferente! A questão da inerrância bíblica é importante, mas não é como a existência de Deus ou a deidade de Cristo! Se os cristãos não podem encontrar uma boa resposta para a questão antes de nós e estão, além disso, convencidos que tal comando é inconsistente com a natureza de Deus, então nós teremos que desistir da inerrância bíblica. Mas nós não devemos deixar um descrente levantar esta questão enganando-se pensando que ele implica mais do que ele realmente faz.
Eu penso que um bom começo para este problema é enunciar nossa teoria ética que fundamenta nossos julgamentos morais. De acordo com a versão do mandamento divino ético que eu defendo, nossas obrigações morais são constituídas pelos mandamentos de um santo e amoroso Deus. Uma vez que Deus não emite ordens a si mesmo, Ele não tem obrigações morais para cumprir. Ele certamente não esta sujeito às mesmas obrigações e proibições a que nós estamos. Por exemplo, eu não tenho nenhum direito de tirar a vida de um inocente. Para mim, fazer isto me tornaria um assassino. Mas Deus não tem tal proibição. Ele pode dar e tirar a vida como Ele decidir. Nós todos reconhecemos isto quando censuramos alguma autoridade que presume tirar vidas como “brincar de Deus”. Autoridades humanas arrogam a si mesmas direitos os quais cabem somente a Deus. Deus não está sob qualquer obrigação para estender minha vida por mais um segundo. Se Ele quiser me desferir a morte agora, esta é Sua prerrogativa.
O que isto implica é que Deus tem o direito de tomar as vidas dos cananitas quando Ele achar melhor. Quanto tempo eles vivem e quando eles morrem é decisão Dele.
Então o problema não é que Deus terminou com a vida dos cananitas. O problema é que Deus mandou os exércitos israelenses acabarem com elas. Não é como mandar alguém cometer assassinato? Não, não é. Antes, uma vez que nossas obrigações morais são determinadas pelos mandamentos de Deus, Ele está mandando fazer algo que, na ausência da ordem divina, poderia ser assassinato. O ato era moralmente obrigatório para os soldados israelitas em virtude do mandamento divino, ainda que, tivessem eles o tratado em sua própria iniciativa, eles estivessem errados.
Na teoria do mandamento divino, então, Deus tem o direito de ordenar uma ação, a qual, ausente de um mandamento divino, seria pecado, mas a qual é moralmente obrigatória em virtude deste mandamento.
Muito bem; mas tal ordem não é contrária à natureza de Deus? Vamos olhar este caso mais de perto. É talvez significativo que a história da destruição de Sodoma por Javé – juntamente com Suas sérias garantias a Abraão que se houvessem tantas quanto até mesmo 10 pessoas retas em Sodoma, a cidade não seria destruída – dá forma a parte do fundo para a conquista de Canaã e ao mandamento de Javé de destruir as cidades lá. A implicação é que os cananitas não são pessoas retas, mas estão sob o julgamento de Deus.
De fato, antes da escravidão no Egito, Deus falou a Abraão,
Sabes, de certo, que peregrina será a tua descendência em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos anos... e a quarta geração tornará para cá; porque a medida da injustiça dos amorreus não está ainda cheia.” (Gn. 15:13,16)
Pense nisto! Deus suspende seu julgamento aos cananitas por 400 anos porque sua perversidade ainda não tinha atingido o ponto de intolerabilidade! Este é o Deus que suporta a dor que nós conhecemos das Escrituras hebraicas. Ele até mesmo permite que Seu povo escolhido definhe na escravidão por 4 séculos antes de determinar que o povo cananita esteja pronto para o julgamento e tirar o Seu povo do Egito.
No tempo de sua destruição, a cultura cananita era, de fato, devassa e cruel, abraçando práticas tais como prostituição cultual e até mesmo sacrifício de crianças. Os cananitas estão para ser destruídos “Para que não vos ensinem a fazer conforme a todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, e pequeis contra o SENHOR vosso Deus.” (Dt 20:18). Deus tinha razões moralmente suficientes para Seu julgamento sobre Canaã, e Israel era meramente o instrumento da Sua justiça, da mesma fora que centenas de anos depois Deus usaria as nações pagãs da Assíria e Babilônia para julgar Israel.
Mas tirar a vida de crianças inocentes? A terrível totalidade da destruição foi incontestavelmente à proibição da assimilação de nações pagãs. No ordenamento da destruição completa dos cananitas, o Senhor falou: “Nem te aparentarás com elas; não darás tuas filhas a seus filhos, e não tomarás suas filhas para teus filhos; Pois fariam desviar teus filhos de mim, para que servissem a outros deuses; e a ira do SENHOR se acenderia contra vós, e depressa vos consumiria.” (Dt 7:3-4). Este mandamento é parte e parcela de toda a estrutura da complexa e característica lei judia de práticas puras e impuras. Para a contemporânea mente ocidental muitas das regras da lei do Antigo Testamento parecem absolutamente bizarras e sem sentido: não misturar linho com lã, não usar os mesmos recipientes para carnes e laticínios, etc. O impulso que sobrepujava estas regras é a proibição de vários tipos de mistura. Linhas claras de distinção são esboçadas: isto e não aquilo. Isto serviu como um tangível e diário lembrete que Israel é um conjunto especial de pessoas separado para Deus.
Eu falei uma vez com um missionário indiano que me contou que a mente oriental tem uma tendência inveterada com respeito à amalgamação (fusão). Ele falou que os Hindus ouvem o evangelho sorrindo e dizem “Sub ehki eh, sahib, sub ehki eh!” (Tudo é Um, sahib, Tudo é Um!). Faz quase o impossível para alcançá-los por causa até mesmo das contradições lógicas incluídas no todo. Ele disse que ele pensa que a razão de que Deus deu a Israel tantas ordens arbitrárias sobre pureza e impureza era para ensiná-los a Lei da Contradição!
Por definição em tal grau forte, severa dicotomia Deus ensinou Israel que qualquer assimilação com a idolatria pagã era intolerável. Era Sua forma de preservar a saúde e posteridade espiritual de Israel. A matança das crianças cananitas não apenas serviu para prevenir uma assimilação da identidade cananita, mas também serviu como uma ilustração tangível e detalhada da separação de Israel como um povo exclusivo de Deus.
Além do mais, se nós acreditarmos, como eu acredito, que a graça de Deus é estendida para aqueles que morreram na infância ou como pequenas crianças, a morte destas crianças era verdadeiramente sua salvação. Nós somos tão apegados à perspectiva naturalista terrena, que nós esquecemos que aqueles que morrem estão felizes por deixar esta terra pela alegria incomparável do paraíso. Então, Deus não faz nada errado ao tomar suas vidas.
Então o que Deus faz de errado ao comandar a destruição dos cananitas? Não os cananitas adultos, porque eles eram corruptos e mereciam o julgamento. Não as crianças, porque eles herdaram a vida eterna. Então quem é o transgressor? Ironicamente, eu penso que a maior dificuldade de todo este debate é o aparente erro que os soldados israelenses fizeram a si mesmos. Você pode imaginar que seria como ter que invadir uma casa e matar uma mulher aterrorizada e seus filhos? O efeito brutal nestes soldados israelenses são perturbadores.
Mas então, novamente, nós estamos pensando de um ponto de vista ocidental cristianizado. Para as pessoas do mundo antigo, a vida já era brutal. Violência e guerra eram fatos da vida na vivência das pessoas no oriente antigo. Evidências deste fato é que as pessoas que contam estas histórias aparentemente não pensam nada do que os soldados israelenses estavam ordenados a fazer (especialmente se estas são lendas da fundação de uma nação). Ninguém estava com peso na consciência pelos soldados terem matado os cananitas; aqueles que o fizeram se tornaram heróis nacionais.
Além do mais, meu ponto acima retorna. Nada podia ilustrar para os israelitas a seriedade de sua chamada como povo escolhido de Deus somente. Javé não estava brincando com eles. Ele estava falando sério, e se Israel apostatasse, a mesma coisa aconteceria com eles. Como C. S. Lewis colocou, “Aslan não é um leão manso”.
Agora, como relacionar tudo isto a Jihad Islâmica? O islamismo vê a violência como um meio para propagar a fé muçulmana. O Islamismo divide o mundo em duas partes: a dar al-Islam (Casa da Submissão) e a dar al-harb (Casa da Guerra). A primeira são aquelas terras as quais têm sido adquiridas em submissão ao Islamismo; a última são aquelas nações que ainda não se submeteram. Assim é como o Islamismo verdadeiramente vê o mundo!
Em contraste, a conquista de Canaã representa o justo julgamento de Deus sobre aquelas pessoas. O propósito não era fazê-los se converterem ao judaísmo! A guerra não foi usado como um instrumento de propagação da fé judaica. Além do mais, o extermínio dos cananitas representou uma circunstância histórica incomum, não uma habitual forma de comportamento.
O problema com o Islamismo, então, não é que ele tem a teoria moral errada; é que ele tem o Deus errado. Se os muçulmanos pensam que nossas obrigações morais são constituídas de mandamentos de Deus, então eu concordo com eles. Mas os muçulmanos e os cristãos diferem radicalmente sobre a natureza de Deus. Os cristãos crêem que Deus é um Deus amoroso, enquanto os muçulmanos acreditam que Deus ama somente os muçulmanos. Alá não tem amor pelos incrédulos e pecadores. Então, eles podem ser mortos indiscriminadamente. Além do mais, no Islamismo, a onipotência de Deus supera tudo, inclusive sua própria natureza. Ele é então absolutamente arbitrário na sua conduta com a humanidade. Em contraste, os cristãos sustentam que a natureza santa e amorosa de Deus determina seus mandamentos.
A questão não é, então, de qual a teoria moral está correta, mas qual é o verdadeiro Deus?
Traduzido e adaptado por Leandro Teixeira.

Deus e o mal em Agostinho

Por Roberto Vargas Jr

Este artigo tem um duplo objetivo. Primeiro, ele é um resumo do livro A relação entre Deus e o mal segundo Santo Agostinho, de Joel Gracioso[1]. Na realidade, é um resumo da introdução, que em si já é um resumo do livro. Seu conteúdo é fruto da tese de mestrado do autor, e esta versa sobre o livro VII das Confissões. Depois é também uma nota, bem mais pessoal, de acordo com certas conversas alhures, sobre a afirmação de que o mal é a ausência de bem como se o mal não fosse real.

1. O resumo do livro
É interessante como a filosofia de Agostinho segue sua própria experiência. Assim, seria apropriado conhecer um pouco de sua biografia para entender muito do que ele diz. Mesmo aqui, o melhor seria explorar mais sua vida. Mas, de forma a evitar um longo resumo, basta informar que sua jornada inclui as fases materialista (do epicurismo ao maniqueísmo, passando também pela astrologia), platônica (via Plotino) e, finalmente, cristã.

Filosofar, para Agostinho, é buscar a Felicidade. Ser feliz é conhecer a Verdade. Conhecer a Verdade é conhecer a Deus. Assim, a própria teoria do conhecimento agostiniana segue esta sua jornada autobiográfica, o materialismo correspondendo ao plano da exterioridade (sensibilidade, exterior), o platonismo atingindo a interioridade (inteligibilidade, interior) e o cristianismo transcendendo ao Absoluto pela Revelação (transcendência, superior). Em tudo a Providência é que possibilita que esta jornada chegue a termo. O caminho “é oferecido e direcionado por Deus e não pelo homem”. E é pela iluminação da Revelação que o homem pode transcender ao Absoluto, conhecendo a vida feliz!

Do mesmo modo, Agostinho resume sua vivência intelectual no livro VII das Confissões, percebendo nela o desenvolvimento de seus conceitos metafísicos, o que lhe permite traçar a relação entre Deus e o mal. Nos 8 capítulos iniciais mostra que “os princípios morais, lógicos e metafísicos do materialismo levam a conceber Deus como algo corpóreo e, por conseguinte, o mal como substância e fatalidade”. “Porém, isso não se sustenta de forma razoável aos olhos do hiponense”. É ainda o plano da exterioridade.

É só a partir do nono capítulo, com seu contato com o platonismo, que Agostinho passa a perceber uma metafísica satisfatória. Ainda haverá deficiências, porém, já interpretado com algumas noções cristãs, ele vê neste novo referencial moral, lógico e metafísico uma concepção de Deus “como o ser, o criador, e o mal por sua vez passa a ser pensado como privação (corrupção, não-ser) e pecado (enquanto causa deficiente)”. Supera-se aqui o plano da exterioridade materialista (inferior), num primeiro momento pela introspecção (interior), mas já em direção ao Absoluto (superior) pela metafísica platônica. Além disso, apresentando o pecado como perversão da vontade que deseja o inferior ao invés do superior, isso “ajudaria a responder o que é o mal e sua origem, mas não explicaria por que o praticamos nem como superá-lo”.

Do capítulo 17 ao 21, a iluminação pela Revelação, finalmente, apresenta Deus “como o Verbo encarnado, mediador entre Deus e os homens” e “leva a pensar o mal como pecado, porém enquanto efeito, como penalidade do primeiro pecado, realidade da qual o homem sozinho não consegue se libertar”. Interessante notar aqui que Agostinho repete sua epistemologia em sua metafísica e pensa Deus “como a pátria da bem-aventurança, a beata uita cujo caminho é oferecido por ele mesmo, o Cristo divino em todas as suas dimensões”.

2. O mal como ausência de bem
Há, comumente, uma grande rejeição à noção agostiniana de mal como ausência de bem. Esta rejeição se deve em grande medida a uma má compreensão do que isto signifique. Entende-se a afirmação como se esta significasse que o mal não existisse, como se não fosse real. Na verdade, bom seria definir mais rigorosamente o que se quer dizer com “existir” ou “ser real”. Porém, fiquemos com o sentido dado pelo senso comum. A concepção agostiniana de mal não significa que o mal não seja real, neste sentido.

O ponto é que a afirmação de que o mal é a ausência de bem tem um sentido ontológico. Dizer isso é dizer que o mal é corrupção. Que um ente qualquer é algo aquém de sua essência. Tentemos exemplificar. Tudo que é, é bom enquanto é (isto é, quanto ao ser). O próprio bem é ser (ou o ser é bem simplesmente por ser). Então o homem é bom enquanto ser. E não fosse o pecado (isto é, o mal), ele seria a imago Dei perfeita, um Adão recém-criado ou como Cristo em sua humanidade. Porém, embora a imago Dei permaneça, ela é algo aquém de sua perfeição criada. E a imperfeição, bem real, é um afastamento essencial desta imago Dei em relação ao que ela deveria ser. Metafisicamente (ou ontologicamente), é um afastamento deste ser (deste ente) de seu modo de ser (sua essência). É bom enquanto é. Mas é mau enquanto se afasta do que deveria ser.

Assim é o mal, segundo esta concepção. Ele é bem real e sentimos em tudo seus efeitos. Mas ele não tem uma existência em si mesmo, ontologicamente falando. Estritamente, nenhum ente, exceto Deus, tem existência em si mesmo. Mas o ponto aqui é que o mal, para que o percebamos, depende do ser do ente que se afasta do seu modo de ser, sendo o mal este próprio afastamento e, mais propriamente, um não-ser. O mal não é, e este é o sentido de mal como ausência de bem.

O mal é visto por Agostinho, ontologicamente, como privação e pecado. Neste ponto, pecado significa a corrupção da vontade (queda/depravação). Mas ainda é necessário passar ao mal moral. Este é o pecado como efeito (ou penalidade). A vontade depravada leva o homem a escolher (deixemos as sutilezas quanto ao livre-arbítrio à parte neste momento, mas não esqueçamos da controvérsia entre Agostinho e Pelágio) e a buscar o inferior e não o superior, a criação e não Deus, a injustiça e não a santidade (cf. Rm).
Por fim, vale dizer que esta concepção em nada é antibíblica, isto é, em nada contraria a afirmação do mal conforme a Palavra. Ou ainda, em outros termos, dizer que o mal não existe ontologicamente não significa aquilo que entendemos comumente, isto é, pelo senso comum, como “não existir” ou “não ser real” [2].

SOLI DEO GLORIA!
……………………………………………………
[1] GRACIOSO, Joel. A relação entre Deus e o mal segundo Santo Agostinho. São Paulo: Palavra e Prece, 2006.
[2] Como respondido a um amigo: “Sim, no sentido metafísico que Agostinho dá, tendo a aceitar esta afirmação de que o mal é ausência de bem. Porém, eu tendo também a acatar Dooyeweerd aqui, pelo menos em parte, e extrapolando Agostinho, ao falar de essência como ‘significado’”.

Acorda, igreja! Acorda!


Por João A. de Souza Filho

Pelo que diz: Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo te iluminará (Ef 5.14).

Em artigos anteriores escrevi uma análise a respeito da igreja e tomei coragem para afirmar que, ao que parece, Deus largou a igreja brasileira de lado e deixou-a seguir seu próprio caminho. É que Deus agiu da mesma maneira com a nação de Israel no passado e falou com o profeta Isaías a respeito. No mesmo capítulo em que Isaías descreve a glória de Deus e se vê confrontado com seu pecado, a mensagem que Deus lhe dá é a mesma que diria hoje a igreja:

“O Senhor Deus me disse: — Vá e diga ao povo o seguinte: “Vocês podem escutar o quanto quiserem, mas não vão entender nada; podem olhar bem, mas não enxergarão nada.” Isaías, faça com que esse povo fique com a mente fechada, com os ouvidos surdos e com os olhos cegos, a fim de que não possam ver, nem ouvir, nem entender. Pois, se pudessem, eles voltariam para mim e seriam curados” (Is 6.910 – NTLH).

Esta palavra de Isaías é tão verdadeira que foi repetida por Jesus, e anos mais tarde por Paulo. Tanto Jesus quanto Paulo usaram o mesmo texto de Isaías para falar a respeito dos israelitas que endureceram seu coração para não ouvir a Deus. Isaías estava falando para os judeus, povo que adorava a Deus e que tinha ritos religiosos e observava os mandamentos e a lei.

Em Mateus 13 os discípulos perguntaram a Jesus: Por que lhes fala por parábolas? E Jesus citou este texto de Isaías. Quando os judeus em Roma rejeitaram a palavra que Paulo lhes pregava ele também citou esta mesma palavra. Isto é, que os israelitas estavam surdos e cegos e Deus os deixara assim para sua própria perdição.

“Por isso, lhes falo por parábolas; porque, vendo, não vêem; e, ouvindo, não ouvem, nem entendem. De sorte que neles se cumpre a profecia de Isaías: Ouvireis com os ouvidos e de nenhum modo entendereis; vereis com os olhos e de nenhum modo percebereis. Porque o coração deste povo está endurecido, de mau grado ouviram com os ouvidos e fecharam os olhos; para não suceder que vejam com os olhos, ouçam com os ouvidos, entendam com o coração, se convertam e sejam por mim curados” (Mt 13.13-15).

Assim como a nação de Israel perdera o foco de sua missão que era a de ser luz para as nações, a igreja brasileira perdeu o foco de sua missão. Os líderes da igreja endureceram seu coração e seus líderes hoje têm olhos que não veem e ouvidos que não ouvem, por isso não entendem a mensagem que Deus tem pra ela.

Confesso que o que vemos hoje no Brasil não espelha a verdadeira igreja de Cristo. Por que digo isto? Porque a igreja atual não preenche os requisitos de uma igreja que diz ser o corpo de Cristo. A igreja se casou com o sistema do mundo. Incorporou em sua mensagem e prática de vida elementos de filosofias humanistas e positivistas, e vem deturpando sistematicamente os ensinamentos de Jesus Cristo.

Décadas atrás culpávamos os católicos por serem uma igreja casada com o sistema, mas, ultimamente os evangélicos se casaram com o sistema do mundo, e seus líderes apreciam a vida palaciana, dividem os púlpitos com políticos sórdidos e abandonaram os pobres e os necessitados. Haja vista que hoje no Brasil muitos pastores e líderes apóiam este governo que tem em sua agenda um programa comunista que vai de encontro, em choque frontal com a mensagem do reino de Deus. Pastores e líderes perderam sua voz profética e a igreja se tornou meramente palanque de políticos que atentam contra a própria igreja!

Que Deus largou a igreja brasileira de lado não resta dúvidas. Isaías afirmou que o Espírito Santo se entristecera e que se tornara inimigo do povo de Israel. O mesmo está acontecendo nos dias de hoje. O Espírito Santo se tornou o maior inimigo da igreja. Não sou advogado de Deus, mas com base nas escrituras posso afirmar que Deus entregou seu próprio povo à matança! Isto é, os que se dizem povo de Deus e não são, porque Deus sempre conserva um povo remanescente que não dobra seus joelhos diante de Baal.

“Mas eles foram rebeldes e contristaram o seu Espírito Santo, pelo que se lhes tornou em inimigo e ele mesmo pelejou contra eles” (Is 63.10). A igreja hoje tem um grande inimigo que não é o diabo. Seu maior inimigo é o Espírito Santo, porque a igreja não tem ouvidos para ouvir nem olhos para ver. A igreja abandonou sua missão na terra e se encantou com seus amantes.

Todos os dias recebo e-mails dos meus pares pastores pedindo que oremos para que as leis que tramitam no congresso nacional e que limitarão a ação da igreja não sejam aprovadas. E que diferença fará a aprovação de tais leis para a Igreja? As leis vigentes no império romano eram ainda mais absurdas, porque era obrigatório que se queimasse incenso ao Imperador, como atesta um documento de Plínio, o menor ao imperador Trajano. Não se podia fazer reuniões à porta fechadas (por isso Lucas descreve em Atos 20.8 que havia muitas lâmpadas na sala onde estavam reunidos os irmãos). Os irmãos se reuniam de madrugada para tomar a ceia e eram perseguidos pelo sistema e até acusados de serem um povo que roubava e que causava mal à sociedade. E, apesar de tudo a igreja cresceu. Nero pôs fogo em Roma e colocou nos cristãos a culpa, e o povo acreditou!

Não me preocupam essas leis. Quem sabe – sem querer ser um profeta apocalíptico – essas leis farão a igreja se despertar para sua verdadeira missão e farão que a mensagem simples e poderosa do evangelho volte a ser pregada integralmente.

Chegará o dia em que a igreja orará como Isaias perguntando: “Ó Senhor, por que nos fazes desviar dos teus caminhos? Por que endureces o nosso coração, para que te não temamos? Volta, por amor dos teus servos e das tribos da tua herança” (Is 63.17).

Mas, para os que temem o Nome do Senhor brilhará o Sol da justiça! Existe uma parcela da igreja que não se dobrou diante de Baal, diante do sistema do mundo e que permanece fiel a Deus. Onde está essa gente? Está no meio da igreja! Assim como na Babilônia havia os fieis que não se dobravam diante dos ídolos, na grande Babilônia de hoje existem fieis que temem ao Senhor e não dobram seus joelhos nem cedem diante dos apelos governistas.

As palavras de Deus dadas a Jeremias são bastante atuais em nossos dias. Jeremias dizia que “a palavra do Senhor é para eles coisa vergonhosa; não gostam dela” (Jr 6.10). E, de fato, os pregadores de hoje têm deixado a palavra de Deus de lado. Jeremias também afirma que “tanto o profeta como o sacerdote usam de falsidade” (6.13). Preciso ser mais claro? Diz ainda o profeta que os pregadores “curam superficialmente a ferida do meu povo, dizendo: Paz, paz; quando não há paz” (v 14).

E finalmente o Senhor diz: “Eis que ponho tropeços a este povo” (v 21).

E a igreja brasileira tropeça e tropeça, culpando o diabo. Mas é Deus que está colocando tropeços no meio do seu povo. Prestem atenção! Deus está no comando! Só assim Deus terá um povo santo e nação santa que é seu grande anelo e propósito.

Como proceder? Que reação devemos ter? Confessar, como Habacuque: Diante da negativa de Deus de que as coisas haveriam de piorar, podemos confessar que continuaremos a esperar no “Deus da minha salvação”!

O poeta Castro Alves gritou desesperadamente diante de Deus diante das injustiças cometidas em seus dias: Deus, onde estás? “Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus, se eu deliro... ou se é verdade tanto horror perante os céus?!”.

Fonte: João Antonio de Souza Filho

terça-feira, 30 de março de 2010

Orações Imprecatórias


Por David Chilton

Levanta-se Deus, e sejam dissipados os seus inimigos! (Sl 68.1)

Há uma classe de orações “imprecatórias” (que amaldiçoam) na Bíblia, e esse fato ocasionalmente incomoda as pessoas: isso não parece concordar com o que lemos em outros lugares na Bíblia sobre amar nossos inimigos (Mt 5.44). Deveria existir tais orações, especialmente no Novo Testamento? Qual deveria ser o seu lugar no culto? Em certa extensão, no mínimo, parece claro que as imprecações são apropriadas no culto: elas são usadas na Bíblia. Grande parte do Livro dos Salmos lida com isso. Não existe na verdade uma categoria separada de “Salmos Imprecatórios” como tal (embora os Salmos 10, 83 e 94 sejam quase completamente imprecatórios). Praticamente todo Salmo tem passagens imprecatórias, e todo salmo é implicitamente imprecatório. Pedir a bênção de Deus sobre o justo é, por implicação, pedir que ele não abençoe o ímpio. Martinho Lutero observou: “Não posso orar sem amaldiçoar”; toda bênção implica uma maldição.

Sendo mais específico, a Bíblia contém maldições explícitas contra o ímpio. Moisés amaldiçoou Faraó (Ex 9.16). Samuel amaldiçoou Saul (1Sm 13.13-14; 15.28). Elias e Miquéias amaldiçoaram Acabe (1Rs 21.17-24; 22.19-23). Amós amaldiçoou Israel (Amós 9.9-10). Jesus amaldiçoou os fariseus (Mt 23). Paulo amaldiçoou Himeneu e Alexandre (1Tm 1.20; 2Tm 4.14). Mesmo os santos perfeitamente puros e justos no céu amaldiçoam seus perseguidores, pedindo a vingança de Deus contra eles (Ap 6.9-11). Não existe nenhuma razão bíblica pela qual isso não deveria continuar em nossas mentes em pelo menos cinco perspectivas:

1. Perspectiva Cristológica. Primeiro, todo o Saltério é Jesus Cristo orando ao Pai: mesmo as passagens onde ele confessa “seus” pecados, mostram belamente quão completamente ele se “fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2Co 5.21). Segundo, as maldições da lei foram cumpridas sobre Cristo, quando a vingança pactual terrível de Deus foi descarregada sobre ele. As orações imprecatórias da Escritura foram aplicadas a Jesus, para que não fossem aplicadas ao seu povo. Isso deveria ser deixado claro em nossa apresentação de tais orações a uma congregação. O melhor livro que já li é o de James Adams: Psalms of the Prince of Peace: Lessons from the Imprecatory Psalms. Outro bom livro sobre os Salmos em geral é o de Calvin Beisner: Psalms of Promise: Exploring the Majesty and Faithfulness of God; este tem uma seção de 20 páginas chamada “Maldições sobre os Violadores do Pacto”.

2. Perspectiva Soteriológica. Na oração, não pedimos simplesmente pela derrota dos inimigos de Deus, mas pela sua salvação também. Mesmo inimigos terríveis da Fé (tais como Saulo) têm sido gloriosamente convertidos. O ponto é a glória de Deus e o bem da igreja, e sempre deveríamos desejar a conversão deles. Sem dúvida, não deveríamos ficar cegos para o fato que alguns inimigos simplesmente não serão convertidos, e devem ser removidos de alguma outra forma.

3. Perspectiva Eclesiástica. Não deveríamos fazer orações imprecatórias contra as pessoas simplesmente porque não gostamos delas, nem mesmo contra aquelas que nos odeiam e perseguem; devemos “abençoar, e não amaldiçoar” (Rm 12.14; cf. Mt 5.43-48). As maldições deveriam ser pronunciadas oficialmente, sob a autoridade da igreja, e contra aqueles que procuram destruir a igreja. Oficialmente, podemos achar necessário pronunciar o julgamento divino contra os ímpios; pessoalmente, devemos mostrar amor e compaixão a todos os homens, mesmo nossos inimigos. Oramos para que nossos inimigos sejam removidos, não primariamente para evitar dificuldade e sofrimento, mas para que a igreja possa realizar sua tarefa.

4. Perspectiva Escatológica. Nem todas as coisas serão resolvidas nesta vida. Devemos confiar no julgamento final de Deus no Último Dia. Deus não manifestou sua ira imediatamente contra todos os perseguidores dos apóstolos, e nem o fará em nossos dias. Esperamos pela vindicação final no final da história.

5. Perspectiva Sociológica. Nosso propósito primário é adorar a Deus. Tanto quanto possível, portanto, deveríamos buscar edificar os adoradores. Alguns são tentados a adotar uma atitude “profética” e impensada, agindo como se todos que discordam deles fosse um inimigo cruel de Deus. Particularmente num dia quando o Cristianismo é igualado com sentimentalismo pegajoso e xarope, uma fé vigorosamente bíblica pode encontrar muito choque cultural com os crentes fracos. Mas o povo de Deus deve ser tratado com respeito e sensibilidade; eles devem ser cuidadosamente conduzidos (não empurrados) a uma cosmovisão centrada em Deus. Se tivermos uma escolha, então deixemos Deus cuidar de explodir os lobos; os pastores devem cuidar das ovelhas.

Uma apresentação honesta e justa dos Salmos imprecatórios tentará demonstrar a justiça e santidade de Deus de uma forma que seu amor e misericórdia brilhem também. Isso pode ser feito apenas mostrando como tais coisas estão relacionadas a Jesus Cristo, em quem “a misericórdia e a verdade se encontraram; a justiça e a paz se beijaram” (Sl 85.10).


Fonte: por David Chilton- Chalcedon Report, Março de 1997.
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto

Uma Espiritualidade Extramundana



Por J. I. Packer

O cristianismo hoje incorpora e reflete a maneira de olhar a vida do mundo, a qual pelos padrões bíblicos é mundana e excêntrica.

O prazer, concebido e buscado em termos dos bens e confortos deste mundo, é o foco central da religião da banheira quente. E revelador ver como o prazer tem sido visto em diferentes épocas da história do Cristianismo e fazer comparações entre as óticas anteriores e esta síndrome em particular. Já que o Cristianismo tanto afirma o mundo como a criação de Deus e o renuncia como corrompido pelo pecado, esperaríamos ver algumas ocasiões históricas de oscilação entre ver o prazer como bem e como mal, e isso acontece realmente. O mundo greco-romano do primeiro e subseqüentes séculos estava firmemente nas garras de uma mentalidade decadente, de busca do prazer. Logo não se admira que o Novo Testamento e os escritos dos primeiros pais gastassem mais tempo atacando prazeres pecaminosos do que celebrando prazeres piedosos, nem que essa visão fosse levada até a Idade Média, na qual o tipo monástico de renúncia ascética do mundo foi julgada a mais alta forma do Cristianismo. Mas então, por insistirem os reformadores e os puritanos na santidade da vida secular, a teologia bíblica do prazer finalmente veio à tona, e a maioria da cristandade já chegou a reconhecê-la.

Calvino expressou essa teologia com brilho e sabedoria singular. Num capítulo de suas Institutos, intitulado "Como devemos usar esta vida presente e seus auxílios", ele avisa contra os extremos, tanto da austeridade exagerada como da indulgência excessiva. Ele afirma (contra Agostinho!) que não usar para o prazer as realidades criadas que oferecem prazer é ser ingrato para com seu Criador. Ao mesmo tempo, entretanto, ele reforça a admoestação de Paulo para não se apegar às fontes do prazer (1 Co 7.29-31), visto que um dia poderemos perdê-las, e recomenda moderação — que é na prática aplicar o freio até certo ponto — ao utilizarmos os prazeres, para que nosso coração não se torne escravo deles a ponto de não podermos passar alegremente sem eles. É até irônico que Calvino, supostamente a encarnação da austeridade deprimida, fosse realmente um teólogo clássico do prazer. Não é menos irônico que os puritanos, supostamente os desmancha-prazeres profissionais (H.L. Mencken definiu o puritanismo como sendo o temor obsedante de que em algum lugar, de alguma forma, alguém pudesse sentir-se feliz), acabassem sendo aqueles que mais insistissem que "a religião nunca foi planejada para minorar os nossos prazeres". Mas o fato é esse.

Contudo, nem todos os evangélicos seguiram Calvino e os puritanos em sua integração do prazer na piedade. O avivalismo cultivou uma ênfase em espiritualidade "extramundana" tanto estreita como negativa.

As pressões seculares provaram ser fortes demais. O materialismo intimidou os cristãos aponto de se esquecerem do céu e procederem na base de que a única vida em que se deve pensar e da qual precisamos desfrutar o prazer é a vida terreal. O freudismo capturou as imaginações cristãs não menos que as pós-cristãs com seu retrato do indivíduo humano impulsionado por desejos desesperados de prazer, especialmente prazer sexual, e sujeito a ficar descosturado ou descomposto se esses apetites não forem saciados. O humanismo promoveu a auto-expressão, a auto-realização como o supremo alvo da vida. Os cristãos têm assimilado esse pensamento e até afirmado que essa é mesmo a vontade de Deus também. Hollywood e a TV têm projetado uma visão de vida de conto de fada, na qual o prazer é o pote de ouro que sempre se encontra no fim do arco-íris, contanto que seu comportamento prévio não tenha sido completamente escandaloso. Dessa mistura tenebrosa de idéias emergiu a religião da banheira quente, preocupada com o prazer pessoal em uma ou outra forma, exigindo que a piedade seja confortante, e insistindo que tudo que abranda as tensões da vida, por isso mesmo, deve ser considerado bom e santo.

Já podemos enxergar agora o que é realmente a religião da banheira quente — o Cristianismo corrompido pela paixão pelo prazer. A religião da banheira quente é o Cristianismo tentando ganhar do materialismo, do freudismo, do humanismo e de Hollywood, no jogo que eles jogam, em vez de desafiar os erros que as regras desse jogo refletem. Resumindo, o Cristianismo caiu vítima mais uma vez (porque isso já aconteceu muitas vezes antes, de diferentes modos) ao fascínio deste mundo decaído. O mundanismo — isto é, abraçar os valores do mundo, neste caso o prazer — é a fonte de onde surge a ótica distinta da religião da banheira quente. "O lugar do navio é dentro do mar", disse D.L. Moody, falando da igreja e do mundo, "mas Deus ajude o navio se o mar entrar dentro dele". Certamente foi justo o sentimento dele.

Sintomas dessa religião de banheira quente de hoje incluem a escalada vertiginosa da taxa de divórcios e segundos casamentos entre cristãos; a prática ampla de aberrações sexuais; um sobrenaturalismo superaquecido que busca sinais, maravilhas, visões, profecias e milagres; a água-com-açúcar suavizadora constante dos pregadores eletrônicos e do púlpito liberal; o sentimentalismo antiintelectual, e os "altos" de emoção cultivados deliberadamente, que são os equivalentes cristãos da maconha e da cocaína; e uma aceitação fácil, irrefletida do luxo na vida diária. Essas tendências não são salutares. Fazem a igreja se parecer com o mundo, impulsionado pelo mesmo impensado desejo por prazer temperado com magia. Por isso minam a credibilidade do evangelho da vida nova. Se é importante reverter essas tendências, uma nova estrutura referencial terá que ser estabelecida. A esta tarefa, portanto, nos remetemos agora, seguindo para onde a Escritura nos levar.

A palavra vinda de Deus que precisamos ouvir sobre este assunto foi escrita pelo apóstolo João: "Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele; porque tudo que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não proce¬de do Pai, mas procede do mundo. Ora, o mundo passa, bem como a sua concupiscência; aquele, porém, que faz a vontade de Deus permanece eternamente" (1 Jo 2.15-17).

Essas palavras apaixonadas são cruciais no argumento da carta de João. Ele escreve a uma igreja remanescente, o cerne fiel que continuou leal ao seu evangelho quando um grande segmento dos membros saiu. Os separatistas haviam professado uma versão mais alta, mais moderna, mais intelectual do Cristianismo. João inicia sua carta aos remanescentes lembrando-os de que sua palavra vinha com a autoridade de uma testemunha ocular de Cristo (1.1-4) e que a investida de sua mensagem é, e sempre foi, a salvação do pecado pela purificação através do sangue de Jesus, para haver como caminhar em santidade com um Deus santo (1.5-10). Em seguida ele explica seu propósito pastoral em escrever para eles — guardá-los dos pecados dos dissidentes (arrogância, ódio e lassidão moral) e mantê-los no caminho da obediência a Deus e do amor uns aos outros que vinham seguindo fielmente (2.1-14) e em triunfo até então. Agora vem esse trecho rompante de três versículos no qual João resume a investida negativa desta carta. Amor do mundo, ele diz em outras palavras, é a causa original das deserções, como é de todas as outras faltas de amor a Deus encontradas entre cristãos professos; portanto, aconteça o que acontecer, não ame o mundo!

O que significa amar o mundo? João analisa esse amor em termos da paixão da carne (o desejo) que diz: "Eu quero..." e do orgulho (vangloria) que diz: "Eu tenho..." Aqui ele está falando do apetite irrequieto por aquilo que você não tem juntamente com gloriar-se vaidosamente daquilo que você tem (v.16). Concordo com a tradução NVI que diz nesse versículo conciso: "Pois tudo que há no mundo — a cobiça da carne, a cobiça dos olhos e a ostentação dos bens — não provém do Pai, mas do mundo." A paixão por possuir e o orgulho de possuir o que o mundo em volta oferece é o que quer dizer amar o mundo.

Com isso já podemos ver por que o amor do mundo exclui o amor do Pai (v. 15). O amor do mundo é egocêntrico, aquisitivo, arrogante, ambicioso e absorto, o que não deixa espaço para nenhum outro tipo de afeição. Quem ama o mundo presta serviço e culto a si mesmo a cada momento. É ocupação de tempo integral. E por aí vemos que qualquer pessoa cujas esperanças estão focalizadas em adquirir prazer, lucro e privilégio material é candidata a uma experiência de destituição, de perda, já que, como diz João (v. 17), o mundo não vai durar. A certeza maior da vida é que um dia nós deixaremos para trás o prazer mundano, o lucro e o privilégio. A única incerteza é se essas coisas nos deixarão antes do nosso dia de deixá-las. Os verdadeiros servos de Deus, entretanto, não têm de enfrentar tais perdas. Seu amor e seu desejo centram-se no Pai e no Filho em uma comunhão que já existe (cf. 1.3) e que nada jamais poderá interromper.

A Maldição do Homem Moderno


Existe uma maldição antiga que permanece conosco até hoje — a disposição da sociedade humana de ser completamente absorvida por um mundo sem Deus.

Embora Jesus Cristo tenha vindo a este mundo, este é o pecado supremo dos incrédulos, o qual levou o homem a não sentir — nem sentirá — a presença dEle que permeia todas as coisas. O homem não pode ver a verdadeira Luz, tampouco pode ouvir a voz do Deus de amor e verdade.

Temos nos tornado uma sociedade “profana” — completamente envolvida em nada mais do que os aspectos físico e material desta vida terrena. Homens e mulheres se gloriam do fato de que são capazes de viver em casas luxuosas, vestir roupas de estilistas famosos e dirigir os melhores carros que o dinheiro pode comprar — coisas que as gerações anteriores nunca puderam ter.

Esta é a maldição que jaz sobre o homem moderno — ele é insensível, cego e surdo em sua prontidão de esquecer que existe um Deus. Aceitou a grande mentira e crença estranha de que o materialismo constitui a boa vida. Mas, querido amigo, você sabe que o seu grande pecado é este: a presença eterna de Deus, que alcança todas as coisas, está aqui, e você não pode senti-Lo de maneira alguma, nem O reconhece no menor grau? Você não está ciente de que existe uma grande e verdadeira Luz que resplandece intensamente e que você não pode vê-la? Você não tem ouvido, em sua consciência e mente, uma Voz amável sussurrando a respeito do valor e importância eterna de sua alma, mas, apesar disso, tem dito: “Não ouço nada?”

Muitos homens imprudentes e inclinados ao secularismo respondem: “Bem, estou disposto a agarrar minhas chances”. Que conversa tola de uma criatura frágil e mortal! Isto é tolice porque os homens não podem se dar ao luxo de agarrar as suas chances — quer sejam salvos e perdoados, quer sejam perdidos. Com certeza, esta é a grande maldição que jaz sobre a humanidade de nossos dias — os homens estão envolvidos de tal modo em seu mundo sem Deus, que recusam a Luz que agora brilha, a Voz que fala e a Presença que permeia e muda os corações.

Por isso, os homens buscam dinheiro, fama, lucro, fortuna, entretenimento permanente ou apego aos prazeres. Buscam qualquer coisa que lhes removam a seriedade do viver e que os impeça de sentir que há uma Presença, que é o caminho, a verdade e a vida.

Eu mesmo fui ignorante até aos 17 anos, quando ouvi, pela primeira vez, a pregação na rua e entrei numa igreja onde ouvi um homem citando uma passagem das Escrituras: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim... e achareis descanso para a vossa alma” (Mt 11. 28,29).

Eu era realmente pouco melhor do que um pagão, mas, de repente, fiquei muito perturbado, pois comecei a sentir e reconhecer a graciosa presença de Deus. Ouvi a voz dEle em meu coração falando indistintamente. Discerni que havia uma Luz resplandecendo em minhas trevas.

Novamente, andando pela rua, parei para ouvir um homem que pregava, em um cantinho, e dizia aos ouvintes: “Se vocês não sabem orar, vão para casa, ajoelhem-se e digam: Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador”. Isso foi exatamente o que eu fiz. E Deus prometeu perdoar e satisfazer qualquer pessoa que estiver com bastante fome espiritual e muito interessado, a ponto de clamar: “Senhor, salva-me!”.

Bem, Ele está aqui agora. A Palavra, o Senhor Jesus Cristo, se tornou carne e habitou entre nós; e ainda está entre nós, disposto e capaz de salvar. A única coisa que alguém precisa fazer é clamar com um coração humilde e necessitado: “ó Cordeiro de Deus, eu venho a Ti; eu venho a Ti!”.

_________________________
Fonte: Revista Fé Para Hoje, número 28, ano 2006.

Via:
Blog dos Eleitos

O Adão Caído... Antes da Queda














Por Jorge Fernandes Isah

Sobre a revelação natural, aquilo que se pode conhecer de Deus através da criação, é interessante que, passado algum tempo [um tempo significativamente pequeno, ao menos aparente], o homem que convivia com Deus no Éden abandonou o conhecimento direto com Deus para se "aventurar" na idolatria. Adão e Eva foram os primeiros idólatras entre as criaturas, se não contarmos satanás e os anjos caídos. Aqueles momentos em que conversavam diretamente com Deus, recebiam dEle o sustento material, em que foram designados para reinar sobre as demais criaturas, e, em especial, viram a demonstração da Sua misericórdia e poder, tudo isso, e muito mais que lhes era agraciado exclusivamente pela bondade divina, não foi suficiente para evitar que caíssem, dando ouvidos à serpente.

Fico a perguntar: Como foi possível? Estando ali, diante de Deus, no relacionamento pessoal e direto com o Criador, ainda assim, sem conhecerem o mal, sem saber o que era pecado, sem a liberdade de escolher o mal [até porque não poderiam escolher o que lhes era desconhecido], revelaram-se rebeldes, e desprezaram a ordem direta do Todo-Poderoso [até então, a única] para darem ouvidos à mentira de uma serpente. E, ao fazê-lo, claramente ignoraram e repudiaram todo o relacionamento íntimo que tinham com Deus em favor de uma suposta igualdade, de se tornarem como Ele.

A questão ali não foi de escolha, pura e simplesmente, pois como haveria uma reles serpente de se contrapor e impor no coração do casal, numa questão de minutos, a corrupção e rebeldia a Deus? [ainda que a serpente fosse a mais bela das criaturas, não passaria de uma criatura diante do Criador]. Teríamos de entender que Deus não criou um ser perfeito, mas um homem estúpido a ponto de avaliar e escolher insanamente a mentira em detrimento da verdade. Então, não nos seria difícil reconhecer em Adão e Eva a burrice típida da natureza humana, levando-os às escolhas inapropriadas.

Em todos os aspectos, Adão e Eva me parecem não ter o conhecimento de Deus, ainda que tivessem um relacionamento, ou um conhecimento parcial dEle. É mais ou menos o que se deu com Lúcifer. Ele tinha um relacionamento, não o conhecimento que somente pode ser dado pelo próprio Deus a quem quiser dar. O mesmo se deu com Judas Iscariotes. Por horas, meses e anos, teve um relacionamento direto com o Senhor, foi-lhe discípulo, mas de nada serviu-lhe esse relacionamento. Por que? Porque Judas não foi regenerado, nem teve a revelação especial de Deus, ao contrário, foi escolhido para manter-se morto em sua velha natureza. É preciso muito mais do que o simples relacionamento com Deus. Muito mais do que o conhecimento da Sua existência, pois até mesmo os demônios creem, e estremecem [Tg 2.19].

Trocando em miúdos: Lúcifer e os anjos maus, Adão e Eva, eu e você, somos pecadores miseráveis, e impossíveis de ter o conhecimento de Deus seja por qual método for, seja por qual esforço for, seja por qualquer ação ou decisão que tomemos. Apenas o próprio Deus pode se revelar, e o fará exclusivamente a quem quiser. As impressões de Deus existem como sensações inexatas, muito distante do Absoluto, e a prova está nas várias religiões que tentam inutilmente conhecê-lo a partir de suas próprias corrupções. O que se tem são tentativas frustradas na ilusão de se obter êxito. Por mais que o homem natural queira buscar a Deus [hipoteticamente, visto o homem não querê-lo, ainda que sinta a necessidade de tê-lo], o que deseja encontrar é qualquer coisa chamada
"deus", não o Deus único, vivo e bíblico.

Em linhas gerais, o Éden não foi suficiente para que eles pudessem conhecer a Deus, o que somente através da regeneração, do novo-nascimento, é possível; levando-me a concluir que tanto Adão como Eva não cairam apenas [assim como satanás e os seus], mas não eram transformados pelo Espírito, e os seus corações de pedra não haviam sido transformados em corações de carne.

Não é interessante que a Bíblia nos revela que tanto Lúcifer como Adão eram obras-primas da criação? Por que então o relacionamento íntimo e direto com Deus os levou à rebeldia? Como disse anteriormente, eles tinham um relacionamento com Deus, não o conhecimento especial de Deus, possível apenas aos regenerados e aos nascidos-de-novo, aos transformados pelo Seu poder [mesmo os réprobos e o diabo têm um relacionamento com Deus: eles odeiam e desprezam-no, o que é uma forma de relacionamento].

Alguém pode dizer: como pode chegar a esta conclusão se Deus criou Adão e Eva perfeitos?

Ao que digo: perfeitos em relação a quê? Às outras criaturas? Ou a Deus? Seriam as criaturas perfeitas? Se eram, porque se rebelaram e caíram [a primeira queda foi de Lucifer, depois, Adão]?

A Bíblia diz que Deus considerou a criação do homem e tudo quanto tinha feito muito bom [Gn 1.31], porque tudo o que Deus faz é bom; mas não vemos nenhuma afirmação de que eram perfeitos. O fato de Adão ser a imagem de Deus ["imago dei"], assim como também somos, não quer dizer que ele fosse perfeito como Deus, assim como também não somos. Certamente eram perfeitos em relação a toda a criação, como "top" da criação. Dizer que pelo pecado essa perfeição decaiu nos leva ao seguinte questionamento: Adão caiu por causa do pecado ou pecou porque caiu? Ao comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, ele já estava em rebeldia, já havia pecado em seu coração, pois o ato primeiramente acontece no coração, interiormente, para depois ser consumado [Tg 1.15]: "Porque do coração procedem os maus pensamentos, mortes, adultérios, fornicação, furtos, falsos testemunhos e blasfêmias" [Mt 15.19].

Veja bem, é impossível que Adão pudesse escolher o mal sem conhecê-lo, mesmo que o diabo tenha-o influenciado e seduzido. Tinha de haver uma disposição no coração para o mal; tinha de haver a semente da corrupção para que o adubo maligno pudesse germiná-la. E isso me leva a crer que o casal do Éden, ao comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, apenas deflagrou o que já continha no íntimo: o pecado latente. Não parece esta a mesma opinião de Paulo? "Assim está também escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito em alma vivente; o último Adão em espírito vivificante. Mas não é primeiro o espiritual, senão o natural; depois o espiritual. O primeiro homem, da terra, é terreno; o segundo homem, o Senhor, é do céu" [1Co 15.45-47]. Ele não vê Adão como um homem espiritual, mas natural, e o texto não diz que ele o foi apenas após a queda; porque não temos dois Adãos vivendo no primeiro Adão, um santo e perfeito que, caído, se tornou pecador e miseravelmente imperfeito. Ele tinha de, mesmo antes, já ser imperfeito, não-santo, não-regenerado; ainda que a maior de todas as criaturas, mas sem a imagem celestial, somente possível através de Cristo. Novamente, Paulo: "Qual o terreno, tais são também os terrestres; e, qual o celestial, tais também os celestiais. E, assim como trouxemos a imagem do terreno, assim traremos também a imagem do celestial... Mas graças a Deus que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo" [1Co 15.48-49, 57].

No frigir dos ovos, Adão não tinha o conhecimento necessário de Deus, nem de si mesmo, apenas possível pela ação do próprio Deus; ele era uma criatura, não um filho; e a prova está no fato de comer o que lhe era proibido. Adão tinha um relacionamento, uma ligação com Deus que não o impediu de pecar; insuficiente, mesmo em um nível direto, para levar a conhecê-lo. Para isso, seria imprescindível reconhecer em Deus a Sua soberania, santidade, perfeição, e senhorio; reconhecer em si mesmo a imperfeição, a falibilidade, a corrupção, e a urgência de se sujeitar a Ele.

Neste aspecto, sem a queda, o homem jamais teria o entendimento adequado e verdadeiro do Deus santo e do homem transgressor. Sem a queda, seríamos criaturas
"fora da realidade", vivendo em um mundo de esquizofrênia e ilusão quanto ao que somos e ao que o Senhor é. Por isso, ela foi inevitável, tinha de acontecer; sem a qual jamais os eleitos seriam cheios do amor divino, e Deus não poderia se manifestar plenamente ao Seu povo. O que nos remete à perfeição divina, à perfeição do decreto eterno, e tudo o que nele está determinado, inclusive o mal, o pecado e a queda.

Sem a revelação divina, a revelação especial [a Escritura inspirada, autoritativa, inerrante e infalível], não existe o conhecimento dEle; e todas as respostas serão tão-somente um esforço de se obtê-las no próprio homem, quando estão unicamente em Deus; restringindo-os, dando-os, a quem quer, segundo a Sua vontade; não sendo realizáveis pelo homem, incapaz de gerá-las por si e em si mesmo.

A afirmação de que a revelação geral é suficiente para que o homem compreenda Deus, a criação, e a si, é errônea, pois o "homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente" [1Co 2.14]. O que se tem é uma percepção da Sua existência e poder, contudo, impossível de levar à verdade [ainda que se apreenda uma ínfima parte dela, não se tem o todo; e sem o todo, a verdade é incompreensível]; antes, fomenta inúmeros enganos, na repetição tosca do mesmo erro: a fé no humano, como o sofisma devastador, altamente destrutível, apropriando-o ainda mais da condenação iminente, ao afirmar a possibilidade do homem ter comunhão com Deus por meios próprios, visto a loucura de Deus ser mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus ser mais forte do que os homens [1Co 1.25]. E isso também foi inerente ao Éden, evidente não somente na queda, mas antes dela. Senão, como cairia Adão?

Apenas a revelação especial, as sagradas e santas Escrituras, a partir do novo homem, da nova natureza dada por Deus, resultará na transformação e regeneração da mente humana, tornando-a cativa a Cristo; ao ponto de, no glorioso dia do Senhor, estar completamente imune ao pecado e o mal, para que o eleito seja apresentado perfeito em Jesus Cristo
[Cl 1.28].

A revelação natural torna o homem inescusável [Rm 1.20], ou seja, condenável e condenado; jamais capaz de levá-lo à salvação. Porque apenas por Cristo, a revelação única e final de Deus, o homem pode alcançar o conhecimento pleno e verdadeiro dEle. Este poder vem do alto, não do homem. E está acessível aos eleitos, àqueles a quem Deus quis se revelar, pois o espírito do homem sabe as coisas do homem, que nele está.

"Assim também ninguém sabe as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus" [1Co 2.11]
, e os que receberam o Espírito que provém de Deus, para que pudessem conhecer o que lhes é dado gratuitamente por Ele [1Co 2.12].

Fonte: KÁLAMOS

sábado, 27 de março de 2010

Espírito de Escravidão



Por D. Martyn Lloyd-Jones

"não recebestes o espírito de escravidão para outra vez estardes em temor" (Rm 8.15)..

O que ele quer dizer com "espírito de escravidão"? Ele está falando do perigo de ter um "espírito de servo", um espírito e uma atitude de escravo. A atitude de escravo em geral surge de uma tendência de tornar a vida cristã, ou o viver a vida cristã, numa nova lei, numa lei mais alta, superior. Estou pensando em pessoas que estão bem esclarecidas em seu relacionamento com a lei — os Dez Mandamentos, ou a lei moral — como um caminho de salvação. Viram claramente que Cristo as libertou disso, e que somente Ele poderia fazer isso; sabem que seus próprios esforços jamais as capacitaram a cumprir a lei. Entendem que Cristo nos libertou da maldição da lei; não têm qualquer dúvida quanto à sua justifi­cação. Entretanto, agora começam a olhar positivamente para a vida cristã, e de uma forma muito sutil — sem ter qualquer cons­ciência disso — tornam-na num novo tipo de lei, e como resultado caem num espírito de escravidão e de cativeiro. Pensam na vida crista como uma grande tarefa a que têm que se empenhar, e à qual devem se dedicar. Leram o Sermão do Monte e compreendem que é um retrato da vida cristã, a vida que desejam viver.


Voltam-se para outros ensinamentos do Senhor registrados nos Evangelhos, e vêem a mesma coisa. Então examinam as Epístolas, e lêem aquelas instruções minuciosas dadas pelos apóstolos, e dizem: "Essa é a vida cristã". E tendo chegado a essa conclusão, consideram-na algo que deve ser assumido e colocado em prática em suas vidas diárias. Em outras palavras, santidade se torna uma pesada tarefa para elas, e começam a planejar e organizar suas vidas e a incluir certas disciplinas que as capacitem a prosseguir. Esta atitude pode ser vista, de forma clássica, na igreja católica romana e em seus ensinos, em toda a idéia do monasticismo, que é nada mais do que uma grande expressão disto que estamos considerando.



Vemos ali homens e mulheres que, sendo confrontados pela verdade cristã, dizem: "Obviamente, a vida cristã é uma vida nobre e sublime, e se alguém vai vivê-la com sucesso, deve se dedicar integralmente a isso". Indo ainda mais longe, dizem: "Não se pode fazer isso, e ainda continuar exercendo uma profissão, ou mesmo continuar vivendo no mundo. É preciso segregar-se do mundo, abandoná-lo completa­mente". E fazem isso. Essa é a forma extrema dessa idéia de san­tidade, de que cultivar santidade e a vida espiritual é uma ocupação de tempo integral, e que é necessário devotar-se a ela exclusivamente, e ter regulamentos e outras coisas para ser capaz de vivê-la.


De acordo com o apóstolo Paulo, isto nada mais é que um espírito de escravidão. Mas não preciso dizer que isso não está confinado aos católicos romanos, nem a outros que se denominam a si mesmos de "católicos" — pode ser bem comum, e é, entre cristãos evangélicos. Podemos muito facilmente impor a nós mesmos uma nova lei. É claro que não a chamamos de lei, e se compreendês­semos que estamos nos colocando sob uma nova lei, não o faríamos; mas ainda assim há uma tendência para fazer isso. Posso prová-lo pelas várias referências feitas a isso nas epístolas do Novo Testa­mento. Vejam, por exemplo, o argumento de Paulo ao escrever aos colossenses, onde ele tem uma passagem específica que trata desta questão.


Observem como ele o expressa no fim do segundo capítulo: "Portanto ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sábados. Que são sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo. Ninguém vos domine a seu bel-prazer com pretexto de humildade e culto dos anjos, metendo-se em coisas que não viu; estando debalde inchado na sua carnal compreensão, e não ligado à cabeça, da qual todo o corpo, provido e organizado pelas juntas e ligaduras, vai crescendo em aumento de Deus. Se, pois, estais mortos com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos carregam ainda de ordenanças, como se vivêsseis no mundo, tais como: não toques, não proves, não manuseies?


As quais coisas todas perecem pelo uso, segundo os preceitos e doutrinas dos homens; as quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria, em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne" (Colossenses 2:16-23). Isso nos dá uma idéia do que estava acontecendo na Igreja primitiva. Uma espécie de monasticismo estava surgindo de forma muito insidiosa. Já não é mais encontrado entre nós dessa forma particular, mas a tendência, a tentação, ainda está presente. Novamente, Paulo escrevendo a Timóteo, tem de advertí-lo contra a mesma coisa. Observem o que ele diz na Primeira Epístola a Timóteo, capítulo 4. "Mas o Espírito expressamente diz que nos últimos tempos apostarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores, e a doutrinas de demônios; pela hipocrisia de homens que falam mentiras, tendo cauterizada a sua própria consciência; proibindo o casamento, e ordenando a abstinência dos manjares que Deus criou para os fiéis, e para os que conhecem a verdade, a fim de usarem deles com ações de graças". Isso certamente é algo que ainda é muito comum. Lembro-me muito bem do caso de uma senhora, uma cristã evangélica, que tinha parado de comer carne. Ela acreditava poder demonstrar claramente que o cristão não devia comer carne porque o animal teve que ser morto, e isso era uma violação do espírito de amor. Essa senhora havia imposto sobre si mesma uma lei. Qual era seu obje­tivo? Era, como ela pensava, verdadeiramente viver a vida cristã. Ela levava o cristianismo muito a sério, era uma cristã evangélica, não tinha dúvidas quanto à justificação pela fé, mas inconsciente­mente estava tornando a vida cristã numa nova lei que tinha imposto sobre si mesma. Essa passagem que eu acabei de citar, sobre espíritos enganadores que proíbem o casamento e proíbem comer carne, devia ser suficiente e para mostrar o que o apóstolo queria dizer com "espírito de escravidão, para outra vez estardes em temor".

CRISTIANISMO, CAPITALISMO E CONTRACULTURA


Por Ed René Kivitz

Sociedade de mercado, baseada na cultura de consumo, está alicerçada na proposta capitalista que tem pelo menos três princípios: acumular, ostentar e guardar. Por trás destes princípios há uma lógica.

Uma de nossas grandes necessidades é nos sentirmos valorizados: "eu sou alguém" em vez de "eu sou um zé ninguém". Jung Mo Sung diz que esse "sentimento de ser", que todos buscamos, depende em grande parte do reconhecimento de outras pessoas. É o olhar do outro que me faz sentir que sou alguém. Todo mundo quer ser admirado, amado, desejado. Para atrair os olhares dos outros precisamos ostentar os objetos que as outras pessoas valorizam e desejam. Frei Betto resumiu bem essa idéia: "a mercadoria, intermediária na relação entre seres humanos (pessoa-mercadoria-pessoa), passou a ocupar os pólos (mercadoria-pessoa-mercadoria). Se chego à casa de um amigo de ônibus, meu valor é inferior ao de quem chega de BMW. Isso vale para a camisa que visto ou o relógio que trago no pulso. Não sou eu, pessoa humana, que faço uso do objeto. É o produto, revestido de fetiche, que me imprime valor, aumentando a minha cotação no mercado das relações sociais. O que faria um Descartes neoliberal proclamar: "Consumo, logo existo". Mas o dinheiro não é capaz de imprimir no fundo da alma humana o senso de dignidade e de pertencimento. O "vazio de ser" que existe em cada coração humano somente pode ser preenchido pela voz de Deus que nos chama para a vida e nos confere dignidade: "você é meu filho amado, minha filha amada, em quem tenho prazer", é capaz de preencher o vazio que o dinheiro pretende.

Finalmente, guardar dinheiro é uma forma de combater uma das grandes preocupações humanas. Diz respeito às contingências da vida e ao medo do futuro: como será o amanhã? será que o futuro me convidará a rir ou chorar? o que, de mal ou bem, está destinado a mim? Para responder a essa inquietação, muitas pessoas acreditam que se tiverem uma boa poupança poderão descansar em relação ao futuro. Você lembra da "Promoção Pé-de-Meia MasterCard®", que prometia garantir seu futuro durante dez anos? Esse é um grande apelo: antecipar, prevenir e prover para remediar os infortúnios da vida. Esta é a promessa sutil embutida no dinheiro. Mas é uma promessa falsa. O dinheiro não é capaz de nos blindar contra os eventuais sofrimentos futuros. Não importa quanto você tenha na poupança, o dinheiro nunca lhe trará a paz. Guardar não é uma boa resposta à insegurança e ansiedade quanto ao futuro. A poupança é útil como previdência, e nos supre em momentos de emergências, mas não "garante nosso futuro".

Paulo, apóstolo, resume a contracultura cristã com as seguintes recomendações: "Ordene aos que são ricos no presente mundo que não sejam arrogantes, nem ponham sua esperança na incerteza da riqueza, mas em Deus, que de tudo nos provê ricamente, para a nossa satisfação. Ordene-lhes que pratiquem o bem, sejam ricos em boas obras, generosos e prontos a repartir. Dessa forma, eles acumularão um tesouro para si mesmos, um firme fundamento para a era que há de vir, e assim alcançarão a verdadeira vida". A cultura de mercado diz que devemos acumular, ostentar e guardar. A contracultura cristã diz que devemos ser gratos e dependentes de Deus, desfrutar das coisas boas que Ele nos dá e repartir generosamente as riquezas que recebemos de Deus. Cada um avalie seu coração para concluir se vive como angustiado filho de sua cultura ou amado filho de Deus.

Autor & Fonte: © 2007 Ed René Kivitz Via: Emeurgência