quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O meio e a mensagem


Por Daniel H. Williams

Na sua ênfase exagerada na adaptação do Evangelho à cultura, que tipo de cristão os cultos contemporâneos geram?

Imagine a cena: num amplo auditório repleto de pessoas, a banda prepara-se para se apresentar no palco. Luzes de todos os tipos, efeitos visuais controlados por computador e sistema de som de última geração trazem ao espaço um ambiente feérico. Logo nos primeiros acordes, o público praticamente vai ao delírio, com gritos de entusiasmo e movimentos ao som da música. Ao visitante desavisado, apenas as letras das canções, exibidas em telões de muitas polegadas, denunciam o caráter do evento: versos como “grande Deus” e “poderoso Senhor” não deixam dúvidas de que aquele é um culto evangélico. No entanto, o comportamento dos frequentadores pouco difere daquele das plateias de shows seculares – embora entoem as músicas a plenos pulmões, as centenas de jovens da congregação comportam-se de modo superficial em relação a tudo que acontece no palco. Assim como na maioria das formas de entretenimento, os membros agem como espectadores passivos, participando apenas de maneira extremamente subjetivo.

O desempenho musical é extraordinário, ainda que o vocabulário das canções seja extremamente limitado. Se as músicas apresentadas têm por objetivo criar uma reação emocional, pode-se dizer que o sucesso é absoluto. Porém, como frequentemente se tem falado sobre o louvor contemporâneo, faltava nas composições um elemento de ensino com conteúdo. Imediatamente após as músicas, sem qualquer esclarecimento quanto ao significado do ato ou menção às palavras de Paulo sobre a ceia do Senhor em I Coríntios 11.23-26, os elementos são rapidamente servidos. Uma vez mais, impressiona a discreta eficiência dessa atividade. Seria possível passar salgadinhose refrigerantes da mesma maneira e com igual rapidez com que são distribuídos o pão e o suco de uva. Não há qualquer instrução sobre o compartilhamento desse importante sacramento. A comunhão parecia limitar-se a um relacionamento estritamente vertical. A coisa ficava entre cada indivíduo e Deus.

Em seguida vem o sermão, proferido por uma pessoa muito capaz, que procurou com afinco estabelecer relações práticas enquanto ensinava alguns princípios bíblicos. Um esboço simples aparece na tela, a fim de que os interessados pudessem seguir a linha de pensamento. O mesmo ocorre com as passagens bíblicas – todas exibidas no telão, como se ninguém conseguisse encontrá-las numa Bíblia de verdade. Dava para perceber, sem muito esforço de memória, que as ilustrações citadas vinham de filmes populares e da televisão. Então, o culto terminou tão repentinamente quanto havia começado, com alguns anúncios sendo divulgados pelas caixas de som e um polido “obrigado” à congregação. Nenhuma bênção ou oração de encerramento foi feita. Simplesmente, não havia quem a ministrasse. Então, as luzes, que permaneceram numa penumbra por todo o culto, são acesas. Era hora de ir embora.

É claro que nem todas as grandes igrejas contemporâneas fazem coisas semelhantes. Porém, a quantidade de comunidades que adotam este modelo eclesiológico é motivo suficiente para levar pastores, líderes e crentes à reflexão. Dizer que o culto foi “popularizado” do ponto de vista religioso não é necessariamente correto. Na verdade, seria bom se fosse o caso, uma vez que uma compreensão fácil às vezes exige que ideias complexas sejam simplificadas. No entanto, esse tipo de forma litúrgica busca encontrar um denominador cultural e teológico comum, visando atrair e envolver o maior número de pessoas. E, como resultado, não era é preciso ser cristão para entender a maior parte do que foi dito ou cantado.

Se isso for verdade, é algo que devemos questionar. Enquanto lideranças de igrejas corretamente querem que os cultos de domingo sejam acessíveis a todo tipo de público, com certeza deve haver aspectos de uma adoração cristã nos quais somente crentes em Jesus são capazes de participar conscientemente, uma vez que a adoração é, em parte, o alimento e a afirmação de sua fé. Uma crítica recorrente 20 anos atrás era de que as igrejas desconsideravam os visitantes não-cristãos utilizando muito jargão essencialmente evangélico. Era uma crítica legítima. Porém, agora parece que a vontade de acomodar a cultura forçou as igrejas a cometerem o erro oposto. Teria o desejo por inclusão iludido as igrejas, levando-as a supor que particularidades doutrinárias ou litúrgicas ameaçariam sua missão num mundo religiosamente diversificado?

CULTO DE INICIADOS

As igrejas apostólicas e pós-apostólicas – aquelas mais próximas da época do Novo Testamento – adotaram uma abordagem diferente. À imagem do tabernáculo do Antigo Testamento, a igreja era onde os cristãos encontravam o “Santo dos Santos”. Assim, era razoável que a adoração não fosse aberta a todos. Já as igrejas dos séculos 4 e 5 observavam a disciplina arcana (a regra ou prática do sigilo) em relação aos encontros de adoração. Agiam assim, principalmente, para garantir que apenas os cristãos batizados partilhassem a ceia do Senhor e confessassem o credo da igreja. Hipólito, teólogo do terceiro século, mantinha uma lista de vícios e declarações que desqualificariam alguém para o batismo. Em um grande número de igrejas, os não-batizados, mesmo catecúmenos em preparação para o batismo, eram expulsos antes que a igreja celebrasse a Eucaristia e confessasse o credo.

Naturalmente, não tem cabimento uma igreja, hoje, expulsar um não-iniciado do meio da adoração. Contudo, especialmente nos primeiros séculos, as “boas-vindas” da igreja para o mundo eram temperadas com salvaguardas exclusivistas em relação à identidade e integridade. O exemplo das precauções da Igreja primitiva contra fazer uso de pérolas do Evangelho promiscuamente fez com que esses tesouros caíssem em mãos despreparadas. As palavras de Jesus são claras: “Não deem o que é sagrado aos cães, nem atirem suas pérolas aos porcos” (Mateus 7.6). Falhar em preservar a singularidade dos símbolos, visões e compromissos cristãos compromete tanto o significado quanto a santidade da vida da igreja. Longe de quaisquer arrogâncias ou elitismos espirituais, essa é uma parte crucial da mensagem do Evangelho.

Gregório de Nissa afirmou com propriedade que “teologia não é para qualquer um” (sermão 29). Por “teologia” ele quis dizer a criação de uma espiritualidade única, centrada em Cristo, que aos poucos transforma a mente e o coração, e na qual “profundezas falam às profundezas”. Em dado momento, o estilo de apresentação afeta a substância da identidade e ensino cristãos, frequentemente deixando sem corte suas pontas afiadas.

Quem testemunha um momento de adoração contemporânea não pode deixar de ser agradecido a Deus por ver uma igreja lotada e muito ativa. Não há dúvidas, no entanto, de que, neste tipo de contexto, muitos são atraídos mais pelas programações para jovens ou pela boa música do que pelos ministérios de discipulado ou pela ênfase no trabalho de missões. A pergunta que fica é inquietante: a que custo as modernas congregações têm se adaptado à cultura contemporânea? É claro que, através da história, a Igreja sempre tentou se acomodar à cultura de sua época, buscando dar um testemunho efetivo. Talvez não haja nada inédito na mega-igreja moderna – a não ser o fato de ela elaborar métodos para facilitar essa acomodação. De fato, o método tem se tornado muito importante para essas congregações. O brilho da adoração moderna compete com os efeitos especiais e sonoros dos mais modernos filmes. O argumento segue na linha de que as igrejas não deveriam ser avessas ao uso de técnicas visuais seculares utilizadas no entretenimento popular. Dizem que uma representação artística e dramática do sagrado se comunica bem com as gerações mais jovens.

Nesse processo, entretanto, parece que as igrejas dão muita atenção a pequenos intervalos de tempo e se empenham em estimular picos emocionais durante seus cultos. Ao invés de facilitar um encontro com o verdadeiro Deus, os próprios métodos de entretenimento passam a ser o foco preponderante. Em dado momento, o estilo de apresentação afeta a substância da identidade e ensino cristãos. Não é por acaso que muitas igrejas contemporâneas oferecem uma pesada dieta de imagens e metáforas bíblicas, deixando de lado a real teologia escriturística.

ÊNFASE NA ATRAÇÃO

Apesar de a estética nunca ser meramente estética, a pessoa comum pode muito bem ignorar a mensagem, ou pior, ficar confusa por causa dela. Uma grande preocupação em adaptar a mensagem a estilos pessoais pode facilmente resultar numa adaptação da fé às necessidades pessoais dos ouvintes. Ao invés de permitir que o Evangelho nos desafie, alteramos a fé histórica para o rumo das correntes do nosso tempo. Sendo honestos, muitos líderes de adoração contemporâneos reconhecem essa tentação.

Como o cristão poderia reconhecer quando esse processo já foi longe demais? Quando é que a missão cristã está irremediavelmente comprometida pela vontade de tornar a Palavra de Deus relevante para as situações contemporâneas? Essas não são questões que possuem respostas simples. Porém, dada a postura avessa ao tradicionalismo de muitas igrejas contemporâneas – muitas das quais abandonaram elementos confessionais ou teológicos em favor da relevância –, é difícil ver o que irá lhes ajudar a preservar o cristianismo ortodoxo por muito tempo. Não menos desconcertante é ver como nossa cultura consumista se infiltrou em muitas igrejas, criando um ambiente igual ao de um shopping, marcado por brilho e mensagens simplistas. Quando a igreja se torna essencialmente um fornecedor de bens e serviços religiosos, ela reforça os hábitos consumistas do próprio cristão, permitindo-o escolher produtos conforme gosto e funcionalidade.

Absorvendo da atmosfera cultural essa mania por escolhas ilimitadas, igrejas criam os programas mais diversos possíveis, buscando acomodar a maior diversidade de cristãos possível. Ironicamente, a importância dada à experiência pessoal e à liberdade das crenças tradicionais é remanescente do protestantismo liberal do começo do século 20. Atualizando sua teologia para a visão moderna, os herdeiros de Schleiermacher e Hegel enfatizavam a primazia da experiência individual com Deus, deixando de lado questões complicadas de doutrina e colocando-as como divisores, um autoritarismo latente ou, simplesmente, irrelevante. Apesar das muitas diferenças entre esse tipo de liberalismo e a mega-igreja evangélica contemporânea, existem semelhanças gritantes em suas abordagens com relação à experiência individual, à cultura popular e doutrinas incômodas.

No entanto, a grande questão perdura: em que direção essas igrejas estão levando seus membros? Que tipo de cristianismo irá surgir de uma ênfase exagerada na tentativa de atrair qualquer um, por qualquer razão? Quando o apóstolo Paulo se tornou “tudo para com todos, para de alguma forma salvar alguns”, conforme sua descrição de si mesmo em I Coríntios 9.22, sua estratégia não evoluiu no sentido de reinventar ou reorientar a fé – até porque ele mesmo também disse que primeiramente transmitiu o que recebeu (I Coríntios 15.3). O tipo de transformação que Paulo experimentou e tentou criar na Igreja primitiva baseava-se numa tradição que tornava a fé, a esperança e o amor cristão pontos de partida para o crescimento do crente. Portanto, se a nossa era pós-denominacional (ou pós-protestante) continuar a elevar a liberdade pessoal de escolha, a estabilidade da sabedoria histórica da Igreja será desesperadamente necessária.

Pelo menos, técnicas espalhafatosas de muitas igrejas modernas nunca substituirão adequadamente o trabalho duro de cristãos que ensinam a adquirir a vida divina do Pai, pelo Filho, por meio do Espírito Santo. Esse tipo de vida pode significar, para muitos, o sacrifício de certos prazeres da antiga e a renúncia a determinados elementos da cultura ocidental. E a igreja que alimenta isso deve ter como objetivo renegar a mera inclusão. (Tradução: Fernando Cristófalo)

Daniel H. Williams é professor de religião em teologia patrística e histórica da Universidade de Baylor (EUA)

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